quarta-feira, 30 de maio de 2012

linhas tortas e peso,


Peso
[Nova York, 1988]
por Richard Serra


Em uma de minhas lembranças mais antigas, vejo-me no carro com meu pai, ao nascer do dia, atravessando a ponte Golden Gate, em São Francisco, em direção ao estaleiro. Meu pai trabalhava lá como encanador, e estávamos indo assistir ao lançamento de um navio. Isso foi no outono de 1943, no dia em que completei quatro anos. Quando chegamos, o navio-tanque, uma estrutura de aço em preto, azul e laranja, estava equilibrado no alto de um guincho. Sua dimensão horizontal me pareceu desproporcionalmente grande; para uma criança de quatro anos, era como um arranha-céu deitado. Lembro-me que caminhei sob o arco do casco com meu pai, observando a enorme hélice de latão, espiando entre os estais. Então, numa súbita explosão de atividade, foram retirados os esteios, traves, tábuas, estacas, barras, picadeiras de dique, todo o cobro; os cabos foram soltos; as manilhas foram desmontadas; os esticadores de fios foram abertos. Havia uma total incongruência entre o deslocamento daquele peso imenso e a rapidez e agilidade com que a tarefa era realizada. À medida que os andaimes iam se desfazendo, o navio descia a rampa em direção ao mar, ao som festivo de gritos, buzinas de nevoeiro, assobios. Liberto de suas amarras, sobre troncos que rolavam, o navio deslizava cada vez mais depressa. Num momento de ansiedade tremenda, o navio-tanque estremeceu, balançou, inclinou-se para o lado e mergulhou no mar, submergindo até o meio; depois subiu, até encontrar o ponto de equilíbrio. A multidão aquietava-se ao mesmo tempo em que o petroleiro também se aquietava, sofrendo uma transformação: o peso imenso e obstinado de ainda há pouco era agora uma estrutura flutuante, livre, solta. O maravilhamento daquele instante permanece em mim até hoje. Toda a matéria-prima de que eu necessitava está contida nesta lembrança, que com freqüência reaparece em meus sonhos.


O peso é para mim um valor. Não que seja mais premente que a leveza: é que sesi mais sobre o peso do que sobre a leveza, e portanto tenho mais a dizer a seu respeito, a respeito do modo de equilibrar o peso, diminuir peso, adicionar e subtrair peso, concentrar peso, dispor peso, apoiar peso, localizar peso, trancar peso; dos efeitos psicológicos do peso, a desorientação do peso, o desequilíbrio do peso, a rotação do peso, o movimento do peso, a direcionalidade do peso, a forma do peso. Tenho mais a dizer sobre os perpétuos ajustes meticulosos do peso, mas a dizer sobre o prazer proporcionado pela exatidão das leis da gravidade.
Tenho mais a dizer sobre o processamento do peso do aço, mais a dizer sobre a forja, a oficina de laminação, o forno de soleira aberta. É difícil exprimir idéias de peso a partir de objetos cotidianos, pois a tarefa seria infindável; há no peso uma vastidão imponderável. Porém posso ver a história da arte como a história da particularização do peso. Tenho mais a dizer sobre Mantegna, Cézanne e Picasso do que sobre Botticelli, Renoir e Matisse, embora sinta admiração pelo que me falta.
Tenho mais a dizer sobre a história da escultura enquanto história do peso, mais a dizer sobre monumentos mortuários, mais a dizer sobre o peso e a densidade e concretude de incontáveis sarcófagos, mais a dizer sobre túmulos, mais a dizer sobre a arquitetura micênica e inca, mais a dizer sobre o peso das cabeças olmeque.   


Somos contidos e condenados pelo peso da gravidade. Porém, Sísifo empurrando o peso de seu pedregulho encosta acima incessantemente interessa-me menos que o trabalho infindável de Vulcano no fundo da cratera fumegante, martelando matéria-prima. O processo construtivo, a concentração e o esforço cotidianos me fascinam mais que a leveza da dança, mais que a busca do etéreo. Tudo o que escolhemos na vida por ser leve logo nos revela seu peso insustentável. Enfrentamos o medo do peso da constrição, o peso do governo, o peso da tolerância, o peso da resolução, o peso da responsabilidade, o peso da destruição, o peso do suicídio, o peso da história que dissolve o peso e erode o significado, reduzindo-o a uma construção calculada de leveza palpável. O resíduo da história: a página impressa, o lampejo da imagem, sempre fragmentária, sempre dizendo menos que o peso da experiência.   
É a distinção entre o peso pré-fabricado da história e a experiência direta que evoca em mim a necessidade de fazer coisas que nunca antes foram feitas. Estou sempre tentando enfrentar as contradições da memória e fazer tábua rasa, tentando valer-me da minha própria experiência e meus próprios materiais mesmo quando me defronto com uma situação que está além das possibilidades de realização. Inventar métodos sobre os quais não sei nada, utilizar o conteúdo da experiência de modo que ela se torne conhecida para mim, e então desafiar a autoridade dessa experiência e desse modo desafiar a mim mesmo. 

[fotografias, revelação e ampliação em papel: Júlia Studart - Fortaleza, CE, 2001] 

2 comentários:

  1. Que beleza de texto, este, do RS. Não conhecia. Obrigado por compartilharem. E muito menos este seu talento de olho para a fotografia. Uma surpresa das mais agradáveis.
    Beijo em vocês,
    JC

    ResponderExcluir
  2. Boa noite, qual seria a referência bibliográfica deste texto?

    ResponderExcluir