sábado, 26 de maio de 2012

roça barroca,

Roça Barroca e outras veredas 
O Globo, Prosa & Verso, 19/05/12
por Manoel Ricardo de Lima


Em seu primeiro livro de poemas, publicado em 1991, intitulado AR, Josely Vianna Baptista anota como dedicatória: “à liga da palavra-alma Guarani / – ñe’eng – e a seus suicidas”. Ñe’eng, em guarani, é uma variação de ñe’ê [linguagem humana, mas que se aplica também ao canto dos pássaros, por exemplo], e significa – numa variação – algo como ‘porção divina da alma’, ‘palavra-alma’. E ela anota também no começo de um poema sem título: “isso tudo já / passa de art / ifício [...]”. O livro que Josely publicou recentemente, intitulado Roça Barroca, é um conjunto de seu exercício com o que ainda se pode chamar de poesia aerada, os “aerados”, desde AR, mas em direção à elaboração de um projeto em interessante deriva política. 
Nesse livro ela apresenta e traduz três cantos sagrados dos Mbyá-Guarani do Guairá, comenta esta tradução com uma séria e sofisticada articulação crítica, apresenta um elucidário dos termos mais importantes dos cantos e uma bibliografia de uso e consulta, depois um poema – Taking notes – que antecede um pequeno ensaio que gira sobre o yvy marã’éy = “terra que não se estraga”, “terra que não se acaba” e “terra que não se corrompe” e, por fim, Moradas Nômades, um conjunto de 30 poemas seus que conversam diretamente com todo o percurso de seu trabalho até aqui e com estes cantos que vêm na primeira parte do livro. Formando parênteses tem-se um texto de Augusto Roa Bastos, como prefácio, e um interessante e elucidativo texto de Francisco Faria, como posfácio, traçando o percurso dos trabalhos de Josely também porque foi seu parceiro em alguns deles.
Com este livro de Josely Vianna é possível pensar, primeiro, acerca de uma pequena linha de interesses por certa tradição oral ameríndia e o que esta linha estabelece como interdição à literatura brasileira do presente. Há alguns casos, como a “canción marafa” da literatura radical de Wilson Bueno, Mar Paraguayo, por exemplo, escrita em “brasiguayo”, com sua marafona do balneário, sem deus e sozinha; do mesmo Wilson, a topografia da viagem alucinada de Meu tio Roseno, a cavalo, em que o tio Rosemundo atravessa os sete céus que são escorados pelas pindovy, as palmeiras azuis, presentes no terceiro canto que Josely Vianna traduz e, ainda, as peripécias das narrativas que ele reuniu em Jardim Zoológico, sobras sonhadas de bichos como o ivitú, o agôalumen ou os kwiuvés. 
Há também o trabalho de Sérgio Medeiros, poeta e tradutor, que nos deu a ler/ver o poema maia Popol Vuh, tradução feita com Gordon Brotherston, que é considerado a grande cosmogonia das Américas. No poema, o que está em jogo são o surgimento da terra, do homem e o papel que têm os diversos deuses do panteão mesoamericano. Agora, com o mesmo Brotherston, se dedica à tradução d’O Manuscrito de Huarochiri que, segundo ele mesmo, é um texto andino tal qual o Popol Vuh, que fala dos deuses e do sugimento das montanhas e das águas na América do Sul. A poesia de Sérgio Medeiros também, de certa maneira, incorpora e movimenta esta cosmogonia indígena. E por fim, ainda como exemplo, o livro mais recente de Ricardo Corona, Curare, um exercício interessantíssimo de etnopoesia que coloca em xeque o seu próprio trabalho anterior e abre uma perspectiva de descentramento, ou seja, de AR, do homem em ar: aquele que encontra o outro em si mesmo para armar o indistinto, um entxeiwi.
Depois, é possível pensar no quanto a armadilha de uma série imprevista pode, no mínimo, provocar uma tensão às séries menos convulsas e mais conformadas com a ideia tardo-moderna de geografia fixada muito comum às leituras críticas concêntricas, como as que insistem na pauta de uma leitura da tradição sem modular o conceito, o problema e sem muito menos apresentar qualquer deriva crítica mais sofisticada e mais próxima dos impasses e das oscilações do presente. São séries que se organizam em torno da reprodução sem contingência ou da repetição sem diferença, por exemplo. Este Roça Barroca de Josely Vianna, num contrafluxo a este modelo apático [este é um ponto, porque a questão da arte como política gira em torno da luta das imagens, logo, da penetração de fluxos que vêm dessa luta], insere uma discussão que vai desde a ideia do que ainda é ou pode ser um livro de poemas até quando e como um livro de poemas pode resultar da composição abrangente entre a crítica e o político.
A primeira parte, os cantos traduzidos, divide-se em Maino i reko ypykue: que são os primeiros ritos do colibri, o canto descreve a cena da criação em que Nãnde Ru Papa tenonde, deus supremo, se desdobra e se abre feito flor; depois Ayvu rapyta: a fonte da fala, quando o deus supremo faz aflorar a fala, torna-a sagrada e a faz fluir por seu corpo, é a origem divida da palavra-alma; e, por fim, Yvy tenonde: a primeira Terra, quando o deus supremo cria a Terra, os sete céus, os primeiros animais e, em segredo, estabelece um acesso entre o homem e os deuses. Os cantos, um sussurro guardado e aberto da tradição oral ameríndia, são parcelas singulares de encantamento. No final do segundo, por exemplo, se pode ler/ver na primorosa tradução de Josely Vianna e tentar acompanhar ao lado a musicalidade do guarani: “Tendo aflorado, a sós, a fonte da futura fala, / e desdobrado, a sós, um pouco de amor; / tendo criado, a sós, um breve som sagrado, / ele refletiu longamente / sobre com quem compartilhar a fonte da fala; / sobre com quem compartilhar o amor, / com quem partilhar as fieiras de palavras do som sagrado.”
A cosmogonia desses cantos resvala diretamente nos poemas de Josely Vianna que compõem a última parte do livro, Moradas Nômades. Uma recuperação das sugestões de seus livros anteriores – Os Poros Flóridos e, principalmente, de Corpografia –, quando o “aerado” se impõe como reaprendizagem e reavaliação de um legado da cultura, tal qual um corpo que respira um futuro possível, e não apenas de uma herança cultural. Francisco Faria é certeiro ao dizer que há nestes poemas uma passagem que se dá na transfiguração das imagens que, por sua vez, comparecem retiradas das cenas cotidianas até “os aspectos cada vez mais sombrios da natureza em lenta desagregação” e “o cotidiano ameríndio situado numa esfera quase atemporal”. Algo como o que ela escreve no poema intitulado treno: “no rumo / do seu desfecho / um homem ouve / o som rouco / que vem do sopro / nos colmos / longos e ocos / do torem // sem remo / só / em silêncio / seu bote / transpõe // a esmo // o curso do termo / extremo”. Assim, o trabalho de Josely Vianna Baptista se imprime sobre o presente porque abre um campo convulso para o indistinto a partir de uma compressão do ar que é, também, uma pressão do corpo político. O rasgo político, pois, está em seus poemas a partir do começo imprevisto e intensivo que vem da cosmogonia ameríndia: deslocar a proposição ser-no-mundo para o que se pode tomar ainda como ser-no-respirável.   



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