Peso
[Nova
York, 1988]
por Richard Serra
Em uma de minhas
lembranças mais antigas, vejo-me no carro com meu pai, ao nascer do dia,
atravessando a ponte Golden Gate, em São Francisco , em
direção ao estaleiro. Meu pai trabalhava lá como encanador, e estávamos indo
assistir ao lançamento de um navio. Isso foi no outono de 1943, no dia em que
completei quatro anos. Quando chegamos, o navio-tanque, uma estrutura de aço em
preto, azul e laranja, estava equilibrado no alto de um guincho. Sua dimensão
horizontal me pareceu desproporcionalmente grande; para uma criança de quatro
anos, era como um arranha-céu deitado. Lembro-me que caminhei sob o arco do
casco com meu pai, observando a enorme hélice de latão, espiando entre os
estais. Então, numa súbita explosão de atividade, foram retirados os esteios,
traves, tábuas, estacas, barras, picadeiras de dique, todo o cobro; os cabos
foram soltos; as manilhas foram desmontadas; os esticadores de fios foram
abertos. Havia uma total incongruência entre o deslocamento daquele peso imenso
e a rapidez e agilidade com que a tarefa era realizada. À medida que os
andaimes iam se desfazendo, o navio descia a rampa em direção ao mar, ao som
festivo de gritos, buzinas de nevoeiro, assobios. Liberto de suas amarras,
sobre troncos que rolavam, o navio deslizava cada vez mais depressa. Num
momento de ansiedade tremenda, o navio-tanque estremeceu, balançou, inclinou-se
para o lado e mergulhou no mar, submergindo até o meio; depois subiu, até
encontrar o ponto de equilíbrio. A multidão aquietava-se ao mesmo tempo em que
o petroleiro também se aquietava, sofrendo uma transformação: o peso imenso e
obstinado de ainda há pouco era agora uma estrutura flutuante, livre, solta. O
maravilhamento daquele instante permanece em mim até hoje. Toda a matéria-prima
de que eu necessitava está contida nesta lembrança, que com freqüência
reaparece em meus sonhos.
O peso é para mim
um valor. Não que seja mais premente que a leveza: é que sesi mais sobre o peso
do que sobre a leveza, e portanto tenho mais a dizer a seu respeito, a respeito
do modo de equilibrar o peso, diminuir peso, adicionar e subtrair peso,
concentrar peso, dispor peso, apoiar peso, localizar peso, trancar peso; dos
efeitos psicológicos do peso, a desorientação do peso, o desequilíbrio do peso,
a rotação do peso, o movimento do peso, a direcionalidade do peso, a forma do
peso. Tenho mais a dizer sobre os perpétuos ajustes meticulosos do peso, mas a
dizer sobre o prazer proporcionado pela exatidão das leis da gravidade.
Tenho mais a dizer
sobre o processamento do peso do aço, mais a dizer sobre a forja, a oficina de
laminação, o forno de soleira aberta. É difícil exprimir idéias de peso a
partir de objetos cotidianos, pois a tarefa seria infindável; há no peso uma
vastidão imponderável. Porém posso ver a história da arte como a história da
particularização do peso. Tenho mais a dizer sobre Mantegna, Cézanne e Picasso
do que sobre Botticelli, Renoir e Matisse, embora sinta admiração pelo que me
falta.
Tenho mais a dizer
sobre a história da escultura enquanto história do peso, mais a dizer sobre
monumentos mortuários, mais a dizer sobre o peso e a densidade e concretude de
incontáveis sarcófagos, mais a dizer sobre túmulos, mais a dizer sobre a
arquitetura micênica e inca, mais a dizer sobre o peso das cabeças olmeque.
Somos contidos e
condenados pelo peso da gravidade. Porém, Sísifo empurrando o peso de seu
pedregulho encosta acima incessantemente interessa-me menos que o trabalho
infindável de Vulcano no fundo da cratera fumegante, martelando matéria-prima.
O processo construtivo, a concentração e o esforço cotidianos me fascinam mais
que a leveza da dança, mais que a busca do etéreo. Tudo o que escolhemos na
vida por ser leve logo nos revela seu peso insustentável. Enfrentamos o medo do
peso da constrição, o peso do governo, o peso da tolerância, o peso da
resolução, o peso da responsabilidade, o peso da destruição, o peso do
suicídio, o peso da história que dissolve o peso e erode o significado,
reduzindo-o a uma construção calculada de leveza palpável. O resíduo da
história: a página impressa, o lampejo da imagem, sempre fragmentária, sempre
dizendo menos que o peso da experiência.
É a distinção entre
o peso pré-fabricado da história e a experiência direta que evoca em mim a
necessidade de fazer coisas que nunca antes foram feitas. Estou sempre tentando
enfrentar as contradições da memória e fazer tábua rasa, tentando valer-me da
minha própria experiência e meus próprios materiais mesmo quando me defronto
com uma situação que está além das possibilidades de realização. Inventar
métodos sobre os quais não sei nada, utilizar o conteúdo da experiência de modo
que ela se torne conhecida para mim, e então desafiar a autoridade dessa
experiência e desse modo desafiar a mim mesmo.
[fotografias, revelação e ampliação em papel: Júlia Studart - Fortaleza, CE, 2001]
Que beleza de texto, este, do RS. Não conhecia. Obrigado por compartilharem. E muito menos este seu talento de olho para a fotografia. Uma surpresa das mais agradáveis.
ResponderExcluirBeijo em vocês,
JC
Boa noite, qual seria a referência bibliográfica deste texto?
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