quinta-feira, 15 de julho de 2010

Os anões, de Veronica Stigger

por Manoel Ricardo de Lima [Jornal do Brasil, 02.07.10]

Veronica Stigger publicou em 2003, pela Angelus Novus, de Portugal, o seu primeiro livro, O trágico e outras comédias. A edição brasileira é de 2004 (pela 7Letras), na charmosa coleção Rocinante. São pequenas narrativas de mutilação, entre construção e dissolução da matéria do mundo. Uma espécie de memória balbuciante do que não tem memória, como disse Henri Michaux; um caso extremo, uma laia, pode-se dizer, de aventura afinada e dilacerante das estruturas de circunstância da vida cotidiana. O nosso plano mais raso.

A primeira destas narrativas, por exemplo, se intitula "Câncer no cu". E conta a historieta desesperada de Moacir, que tem câncer no ânus e um gato verde. Incomodado, insone e exausto, Moacir tenta arrancar o câncer com uma faca pontiaguda, o ânus fica maior, o câncer continua persistente. Por fim, com outra faca pontiaguda, Moacir pega o gato verde pelo pescoço e o mata.

Depois, Veronica publicou o Gran Cabaret Demenzial, em 2007, pela Cosac Naify. Neste, a brincadeira (il scherzo, a simbologia desfeita) é uma espécie de soirée dadaísta, um antimecanismo gratuito de deformação, de novo, da esfera cotidiana. Algo metido a besta, como a vileza da piada contaminada de Oswald de Andrade, amor-humor, mas num desvio para uma naturalidade suspeita e para uma imoralidade. Narrativas que armam também uma conversa fabulosa com a sugestão de Mário de Andrade, a sátira dura do livro, para, através do cômico enviesado por certa anomalia da religiosidade, sem complacência, tocar a paz entre os homens de boa vontade.

Basta ver a narrativa-anúncio digerida: LUANA coroa baiana / tarada por anal de 4 quente / na cama garganta / profunda oral até o fim. Ou a narrativa intitulada "Argumentum chronologicum", que trata de um país com experiências cronológicas que pervertem o turismo e o império. O país se chama Jakoo.
O embaraço das narrativas de Veronica Stigger desemboca agora num livro-quase-objeto, intitulado Os anões. Um livro com fuselagem surpresa, em papel cartonado, uma caixinha quase tumular, com apresentação de Mario Bellatin, que está tardiamente convencido de que o livro é antes uma experiência, depois leitura. Ele chama a isto de característica do livro contemporâneo.

O fato é que Os anões, esta caixa-preta, refaz o olhar em torno das narrativas de Veronica, não só porque ela é pesquisadora e crítica de artes visuais, mas porque com este quase livro de artista parece enfrentar também através do projeto gráfico de Maria Carolina Sampaio um ponto furo da e na imagem. O jogo (il scherzo) agora é quando a palavra entra como um corpo escorregadio, entre encantamento, deboche e exílio, num beaux livre impresso na China. O que remete, de certa maneira, ao termo que Mirella Bentivoglio atribuiu aos livrosobjetojogo de Paulo Brusky: librismo. Librismo é o livro com ações de despegamento, com um redemoinho orgiário da matéria.

As pequenas narrativas de Os anões são um contraponto à burocracia e à quase escassa erudição, além do enfado de certo maneirismo literário excessivo, da maioria da prosa brasileira recente. Elas têm imaginação, vertigem e gesto, elas têm fabulare.

Ainda com Michaux porque têm a ver com poesia: são uma respiração com algo de inapropriado, asfixiante, de fluidez benéfica e devastadora. Livro mínimo, porém bastante, que atravessa as personagens fundamentais sugeridas por Elsa Morante, as que indicam as três atitudes do homem diante da realidade: o calcanhar de Aquiles, ou o Grego da idade feliz (a realidade se mostra viva, fresca, nova e absolutamente natural); Don Quijote (a realidade não o satisfaz e lhe inspira repugnância, e ele procura salvação na ficção); e Hamlet (a realidade inspira repugnância, mas não encontra salvação, e no final decide não ser). Elsa as chama de personagens-atitudes que dão origem, e origem como um salto, às personagens híbridas: enxertos, derivações e contaminações. Veja-se as narrativas "Os anões" (que dá título ao livro) ou "Ceia", que dizem dessas derivações, mas em estruturas corrosivas e debochadas como uma gargalhada solta e perversa.
Veja-se ainda as pequeníssimas narrativas "L'après-midi de V.S." ou "(Flávio de Carvalho)", respectivamente, apontadas para uma releitura crítica: Achei que as igrejas daqui eram mudas / Sabia mas não sei mais qual é o sexo de Wega Nery / Só eu não senti o terremoto e New Kolor / (Utilicity 13,90) / Lâmina de aço inox / Cabos de polipropileno / Resistentes à máquina / de lavar.

Veronica Stigger lança também, agora, junto com Os anões, o livrinho infantil intitulado Dora e o sol (Editora 34), que narra as aventuras de uma cadela com o sol, a noite e o dia, outra vez quando o sol reaparece casa adentro, pela porta. Muito bonito. Ainda, num conjunto de ensaios, no livro Maria (Cosac Naify), sobre Maria Martins, organizado por Charles Cosac (que compõe uma série importante sobre a artista ao lado dos trabalhos de pesquisa publicados mais recentemente, como os de Raúl Antelo, Maria com Marcel Duchamp en los trópicos, de 2006 e o de Graça Ramos, Maria Martins: escultora dos trópicos, de 2009) Veronica participa com um texto intitulado "Escritos de Maria Martins: 1956-65", acerca dos livros que a artista escreveu a partir de algumas viagens à Índia, à China, ao Egito e ao Japão e de seu interesse pelo que se produzia fora da Europa, aquilo que era impresso na China. A ideia de Veronica, me parece, é encontrar em Maria Martins, ou com Maria Martins, uma respiração para além da mera anedota, como estas suas narrativas todas, sempre a provocação de um encontro com uma gente que escava um pouquinho mais.

Ver também: http://jbonline.terra.com.br/pextra/2010/07/02/e020711514.asp

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