sexta-feira, 2 de abril de 2010

Carlito Azevedo,

Entrevista com Carlito Azevedo
Jornal Público, Lisboa, Portugal 
[03.04.2009]

Para entender o mundo, vou ler os poetas novos
por Alexandra Lucas Coelho

O poeta brasileiro Carlito Azevedo co-editou uma revista com Portugal, mas houve um choque de ritmos: os portugueses produziam demasiado. Agora, gostava de voltar a essa parceria. Esteve em Lisboa há dias, para o Dia Mundial da Poesia. Só de a ler, Adília Lopes continua a ser a mulher da vida dele. Nascido em 1961, o poeta e editor Carlito Azevedo abriu a revista "Inimigo Rumor" a poetas nascidos entre os anos 70 e 80, e foram eles que o fizeram voltar a escrever, dez anos depois do seu livro "Sobre a Noite Física" [publicado em Portugal na Cotovia].
Os novos poemas podem ser lidos não em livro mas online [destaque para o longo inédito "O tubo", na revista "Modo de Usar"] http://revistamododeusar.blogspot.com/2008/10/carlito-azevedo_06.html. A Internet é um bom meio para a poesia anti-monumento em que este carioca acredita. Veio a Lisboa participar no Dia Mundial da Poesia celebrado no CCB.

Apesar de continuar uma amizade dos dois lados, perdeu-se a parceria Portugal-Brasil que existiu na "Inimigo Rumor". Porquê?
É bom que se diga que a amizade continua, pode parecer que foi uma briga. O que acontece é que sempre pensei a revista em metamorfose. Nenhum número se parece com outro porque a vida muda. Quando foi sugerida a parceria, muita gente no Brasil foi contra: "Porquê? A revista é aqui." E eu falei: "Não, a grande metamorfose vai ser agora, ela virar binacional." Só que essa metamorfose continuaria, incluindo ela deixar de ser binacional. Por um lado havia as dificuldades técnicas: tudo era impresso no Brasil e tinha que ser mandado para cá. Depois, eu tinha um espírito mais anárquico, e havia uma diferença: aqui ela era editada por críticos e no Brasil por poetas. Não vou ocultar um choque de sensibilidades. Não que algum lado estivesse certo ou errado, mas houve um choque. Houve uma predominância de textos críticos quando começou a parceria, talvez por isso, por aqui ser editada por críticos. No número sobre Ruy Belo havia bem essa divisão, sempre um ensaio a cada ciclo de poemas.

Disse que uma das coisas de que se arrependia era de ter baixado a guarda em relação a esse número.
[Rindo] Essa expressão é minha, mas onde eu disse isso?

Numa entrevista.
Na verdade, com o tempo passando, não imagina como Ruy Belo foi importante para a poesia brasileira. Hoje existem várias dissertações sobre ele e as pessoas colocam lá um agradecimento à "Inimigo Rumor". É um número muito bonito, eu amo o Ruy Belo, acho um poeta fundamental, e ter trazido aquilo para o Brasil foi bom. Mas talvez seja uma coisa que se descubra depois. Talvez eu ter baixado a guarda tenha sido um erro e um acerto. Eu não achava que o número tinha de ser tão grande - porque foi enorme! Mas, menos que uma revista perfeita, me interessa que ela tenha uma eficácia nos poetas contemporâneos. Então se houve essa transformação, se poetas como Manoel Ricardo de Lima e Tarso de Melo anunciaram esse golpe do Ruy Belo, têm com ele a reacção que tive com Adília Lopes, para mim já está completamente cumprido. Isso é que é interessante, que aquilo tenha provocado turbulência na poética nacional, que era menor sem o Ruy Belo. Disso não me arrependo nada. Talvez eu me estivesse referindo a outra coisa. Havia sempre uma questão lá no Brasil: "Puxa, os portugueses estão ocupando muito espaço na nossa revista, eles editam quase tudo!" E aqui eu tenho que louvar a competência e o poder de trabalho dos editores portugueses, principalmente o Pedro Serra e o Osvaldo Silvestre, na produção de ensaio, enquanto o ritmo brasileiro era mais preguiçoso. Quando chegava a altura de organizar a revista, a gente ainda não tinha feito quase nada e eles já tinham tudo pronto! Aí saia a revista e era toda de Portugal [ri-se até as lágrimas]. "Pô! O que é que a gente andou fazendo?" Quando encontro algum amigo que não vejo há muito e ele pergunta o que ando fazendo, sempre acho que devia estar fazendo alguma coisa melhor, mais digna daquela pessoa, e era assim que eu me sentia em relação a eles. Me perguntavam: "O que é que vocês fizeram?" E eu não tinha nada para apresentar! Ficava muito envergonhado. Os caras tinham um número completo e eu com dois poemas.

Com a facilidade técnica que existe hoje, havendo gente interessada de um lado e do outro, o que é que se pode fazer para que quem está a escrever poesia em português se possa ler?

Não o acordo ortográfico, com certeza, que não vai mudar nada. Mas assim como eu quis que a "Inimigo Rumor" fosse uma revista em metamorfose, e virou portuguesa, e não virou mais, nada impede que volte a ser. Inclusive por essa amizade, e por ter vindo a Portugal e conhecido outras pessoas, pode ser que ela volte. Eu adoraria que voltasse. A tecnologia está facilitando tudo.Voltar a ser brasileira e portuguesa só depende de uma coincidência de interesses. Um lado lindo que tem a poesia é que oficialmente ela está fora do mercado. As leis do mercado se impuseram no romance. Como há possibilidade de ser vendido, fazer dinheiro, virar filme, hoje vejo que os romancistas escrevem com um olho no mercado. A poesia não tem jeito, não vai vender grande coisa, a não ser um grande nome, Drummond, Herberto Helder. A poesia nova não vai vender 10 mil. Isso nos dá liberdade de fazer do jeito que a gente quer. Então o que impediria de fazer um número francês-brasileiro, ou argentino-brasileiro? Nada. A "Veja" ou a "Focus" não podem se dar a esse luxo porque têm de vender toda a semana. Não vai ter um número do jornal feito em parceria com Espanha, o jornal tem uma estrutura. Mas a revista de poesia pode ser o que ela quiser. A "Inimigo Rumor" é movida a simpatias. Eu queria que um dos próximos números nem fosse em papel, mas um DVD, com extras. Por exemplo, em vez de botar um poema da Marília Garcia, ela monta um clip do seu poema, ou lê-o, em vez de as entrevistas serem transcritas podem ser em vídeo. E depois as pessoas roubam, botam no YouTube, e aquilo vai perdendo o controle, vai-se desfazendo em moléculas. Tudo é possível para essa revista. O que não quero é que seja uma coisa fixa, zelando pelo seu formato.

É também a ideia de que a poesia é mais ampla que a literatura?
Sim. Literatura tem a ver com escrita mesmo, poesia pode ter a ver com escrita, é um dos "flirts" dela, mas nem é o principal. A poesia não nasceu escrita. É tão generosa que às vezes se dá ao luxo de aparecer num livro de poemas. Para mim, a única coisa que a poesia quer ser é imprevisível. A grande condenação que se lhe pode fazer é a previsibilidade. O que vai fazer de um poema um bom poema? O rigor técnico, se a pessoa sabe metrificar? Não. O poder da metáfora? Tem gente que escreve contra a metáfora. Então, para julgar poesia foram-se perdendo critérios, mas um permanece: quanto mais imprevisível mais me agrada.
Existe um poeta no Brasil que fez um livro muito interessante, com nomes de bares que visitou. Era sensacional, imprevisível que no Brasil surgisse aquilo. Quando ele faz o segundo livro falando a mesma coisa, e depois o terceiro, é legal, mas existe uma relação entre previsibilidade e interesse. Uma das coisas que mais me chamou a atenção na Adília é que, de entre os clichés que se faz de uma poesia de um país, lá no Brasil existia a ideia de que a poesia portuguesa ou seria aquela coisa da geração de 61, mais intelectualizada, ou o lirismo derramado. Mas eu não esperava tanta ironia - e tanto amor. Era imprevisível demais. O que tem tudo a ver com não ter o controle. Abrir para o imprevisível é um dos raros prazeres dessa terra.

Diz que não pode gostar tanto de um poeta de outro século como de um poeta do seu século. E está ligado a um grupo de poetas mais novos 10, 15...
... 20 anos.

Abriu-lhes a "Inimigo Rumor", editou-lhes livros, colabora em projectos deles.
Fiquei quase 10 anos sem escrever poesia e até um pouco desconfiado do género depois do "Sob a Noite Física" [disponível na Cotovia]. E a chegada dessa geração em 2000 - da Marília Garcia, do Walter Gam, do Ricardo Domeneck, da Angélica Freitas, da Juliana Krapp, poetas muito novos - foi vital e vitalizadora. Não que tenham resolvido a minha crise, mas a gente fica limitado se chega a um ponto em que escreve um poema e pergunta: "E daí? Para que é que serve?" Entra numa crise muito ruim, porque a poesia em si não tem utilidade maior do que uma caneta ou um curativo. Mas quando você vê gente nova escrevendo coisas que ampliam a sua sensibilidade, onde você via o homogéneo passa a ver diferenças.
Aquele momento de crise que era 2001 - ataque às Torres Gémeas, chegada maciça da informática e da Internet, informação genética, pesquisas com a ciência, fundamentalismos, esse momento muito confuso, que está muito confuso até hoje, entendi-o melhor com os poetas contemporâneos.Tenho um pouco essa atitude, de cada vez que estou confuso vou ler os poetas novos. Quando houve a invasão do Iraque, não lia muito os jornais, mas procurei os poetas.

E nisso, ter uma revista de poesia é interessante: o que os poetas de Bagdad estão escrevendo hoje, o que os poetas na China estão escrevendo hoje? É um tipo de informação diferente dos jornais, dos blogues.
Para mim é mais fácil entender o século XIX lendo Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, do que toda a historiografia. Quando eu os leio me sinto coincidindo com aquele tempo. Então a esses poetas eu devo a compreensão de que talvez o meu silêncio viesse da exaustão de uma forma de viver a experiência poética, que já não combinava com a minha forma de viver a vida, que é o que interessa. Se a gente fala de poesia está falando de vida, essa porosidade neles é muito interessante. Não entre a verdade e o escrever, mas entre viver e escrever, o que é uma fimbriazinha subtil. Lendo esses poetas novos percebi que a minha relação entre viver e escrever estava desequilibrada, porque a minha vida tinha-se modificado, mas não a minha poesia.

Do que se está a publicar em Portugal, o que é que conhece e lhe interessa?
Bom, inescapável, inescapável...

Adília Lopes.
É o amor da minha vida. É a mulher da minha vida - que nunca vi!

Quando a Inimigo Rumor fez 10 anos, a entrevista era com a Adília Lopes.
E quando fez cinco anos também. O valter hugo mãe foi ao Brasil e me apresentou poetas que achei interessantes, mas não acendiam a chama. Depois falou: "Acho que você vai gostar mesmo é de Adília Lopes, mas não tenho nenhum livro dela aqui. Quando chegar no Brasil eu lhe mando." Aí um dia chegam pelo correio dois poemas, "Os desastres de Sofia" e "A Elisabeth foi-se embora". Depois escrevi para o André [Jorge, editor da Cotovia] perguntando se na livraria dele havia algum livro dela e ele me deu de presente uma caixa com todas as primeiras edições. Mas por mais que eu a amasse depois, tudo já estava naqueles poemas: ali foi o encontro. De madrugada telefonar para todos os amigos lendo aquilo. Alguns adoravam, outros me chingavam. Convidei uma crítica, a Flora Süssekind, para um café só para mostrar os poemas e ela ficou tão deslumbrada quanto eu. Falou: "Precisamos de organizar uma antologia." É o inexplicável. Você encontra uma pessoa e sabe que vai amá-la para o resto da vida. Ainda que agora ela lance um livro que não me agrade tanto, já escreveu tantas coisas tão lindas, tão maravilhosas, que a quero e cultuo como a minha poeta de eleição.

Em língua portuguesa?
Em qualquer língua. Fico arrepiado quando lembro [passa a mão no braço]. Fiz questão de não procurá-la. Não precisa, já tem a Adília da mente. Fora ela, conheci o Manuel de Freitas, até me correspondi com ele, me mandou alguns livros, gosto muito dele, acho um poeta interessante. O António Franco Alexandre tem um livro, "Quatro Caprichos", que é meu sonho editar no Brasil. A Adília já consegui, agora o meu plano é António Franco Alexandre. Acho-o bárbaro, um poeta fenomenal. A poesia que mais gosto é a poesia em metamorfose. Eu tinha, talvez pela influência da pintura, a obrigação que um poema durasse uma página. Me sentia com aquele incómodo de alguém que aplaude uma ópera que não acabou, e você é o único a aplaudir. Hoje, a grande aventura está em não saber quando aplaudir - e por que não aplaudir naquele momento? Um poema que você não sabe se continua na próxima página ou não, como se cada virar de página fosse um momento perigoso, na corda bamba, em que você pode cair. Mas de onde? Do seu pedestal de bom leitor. Tem que ter humildade, o poema é maior que você, e ser enganado por ele não tem nenhum problema. O poema tenta fugir, e às vezes é o leitor que vence. É essa relação de perseguição e fuga que hoje me faz fazer poemas longos, até contra a ideia de ter o controle total sobre o poema. Da forma como hoje o vejo, nenhum poema acaba. Não existe mais o clique que faz o poema fechar. Ele pára por alguma impossibilidade, e no próximo continua, porque mais que uma criação de pequenos objectos a poesia é um devir, uma metamorfose do seu pensamento se fazendo.

O oposto da ideia de pontos luminosos.
Os pontos luminosos são uma imagem muito boa, mas talvez os pontos de escuridão sejam agora mais misteriosos. Ou pelo menos a escuridão é tão boa quanto a luz.
Num ensaio para a revista "Modo de Usar" online(http://revistamododeusar.blogspot.com/2008/10/carlito-azevedo_06.html), Ricardo Domeneck descreve o surgimento de Carlito Azevedo no momento de um baixar de braços entre os pós-concretistas e os marginais cariocas. Você apareceu, em 1991, não recusando nada, reclamando-se da poesia concreta, da marginal, do surrealismo, do João Cabral, aproveitando o que lhe interessava de cada. A sua geração é a primeira que pode aparecer assim, a que pode cruzar tudo, com liberdade para sair das contendas entre movimentos?
O que acontece também é que o final dos anos 70 e começo dos 80 foi um momento de muita tradução no Brasil. O Ezra Pound até diz que um bom momento poético é sempre precedido por um momento de muitas traduções. O espaço ficava limitado entre marginais e concretos, porque só se lia o que eles traduziam. Por exemplo, os concretos faziam o seu elenco com os "Caligramas" do Apollinaire, o "Lance de Dados" do Mallarmé. Era trazer o outro, mas um outro que era o mesmo, era sempre traduzir na poesia de Ezra Pound o que confirma o que eu penso, traduzir na poesia de Cummings o que confirma o que eu penso, não o que contesto.

Mas Haroldo de Campos traduziu muitíssimo.
Mas raras vezes traduzia uma obra inteira. Eles traduziam fragmentos que eram o que chamavam pontos luminosos. Podiam traduzir até a Bíblia, mas o que remetia para uma concretude da linguagem. E os marginais traduziam os "beatnicks". Então ficava parecendo que só existiam esses dois pólos. Mas nesse fim dos 70, começo dos 80, saiu uma boa tradução do Wallace Stevens, sairam traduções de poesia hispano-americana, que, apesar da proximidade, não eram muito traduzida. Então começámos a conhecer poetas peruanos, a poesia argentina e a chilena entraram com mais força, a tradição do leste europeu...

Czeslaw Milosz?
Foi fundamental. A Wyslawa Szymborska. O Joseph Brodski, que não tem mais nada a ver com o Maiakovski, com o futurismo russo, que era o que os concretos traduziam. Isso mostrou que não existia só o espontâneo e o supertrabalhado, existiam outras gamas. Então, quando a minha geração entra em cena, o que ela já tem é o fim de uma limitação. Uma curiosidade de procurar no estrangeiro não mais o mesmo, o que eu sou, mas o outro, o que eu não sou. O que me interessa é o que eu não sou. Foi um pouco como um laboratório. Traduzir para causar turbulências nas poéticas, ficar mais robusto, fazer exercícios de musculação, usar coisas que podiam diluir o sangue, o que já geraria movimento para sair daquela estagnação, que graças a Deus eu não vivi.

Descreveu-se uma vez como um poeta muito tradicional.
Era um pouco provocação.

Que relação estabelecia com as formas fixas, a que o Ricardo Domeneck chamou as "vacas magras"?
Sempre quis que a minha poética fosse uma metamorfose, que se fosse transformando, nunca gostei de me conformar com o que fosse conseguindo. No que escrevi tem muito pouco de forma fixa, não é uma coisa que me interesse. Cada vez mais gosto de uma poesia porosa à vida, o que Drummond chamava de contacto furioso da existência. A gente namora, até pode ter um plano fixo para o seu namoro, mas a realidade muda a cada hora. No trabalho é a mesma coisa. E esse contacto furioso da existência destrói qualquer possibilidade de forma fixa, porque a vida não é em forma fixa. Será útil para quem queira fazer do seu poema um monumento perene. Mas para o tipo de relação que quero estabelecer prefiro que o poema tenha a dinâmica de uma relação amorosa. Me interessa muito menos criar estátuas.

O seu poema inédito em livro, "O Tubo", publicado na "Modo de Usar" em Outubro, tem essa porosidade. Seguimos o passeio de um par e a própria forma do poema vai pedindo aquela forma, vai desfiando aquele longuíssima fita no ecrã, que não é uma forma muito comum. É como se o surgimento do poema pedisse aquela forma, uma fita num percurso.
Não consigo confundir o verso com linha interrompida. Sempre imaginei as várias formas que uma linha pode tomar. A visão desse poema era a de uma certa realidade típica do Rio de Janeiro nos últimos anos, o sofrimento imposto aos imigrantes e a riqueza de uma minoria que anda com 4x4 blindados. Agora, a classe mais alta só anda com carro à prova de tiros. Tudo é blindado. É uma forma que existe lá nos condomínios, como se a vida pudesse ser blindada contra todo o risco.

O poema abre com a imagem de uma rapariga...
... uma imigrante coreana, que será o mais pobre do Brasil hoje, e fecha com esses carros, tudo convivendo no mesmo espaço, na mesma cidade. E eu não queria que isso viesse em longos versos, aquele versículo bíblico, que tende a ser um pouco sentencioso. O problema do verso longo é que tem quase uma vocação para uma coisa que se afirma. O verso curto nega isso. Eu não queria falar nenhuma verdade sobre aquelas coisas, era muito mais o meu espanto, o sobressalto, a respiração entrecortada, do que alguém que pensou, analisou aquilo, e agora vem dizer as suas verdades sobre a situação do imigrante do Rio de Janeiro. O versículo incomoda-me por essa tendência aforística: eu te direi as grandes verdades. Vejo "O tubo" como uma respiração entrecortada, um poema escrito sob susto. Aquele momento em que aconteceu algo de grave com você, e chega a polícia, chegam os amigos, perguntam o que aconteceu, e você não consegue nem falar. Era essa dinâmica do depoimento urgente feito sob o stress pós-traumático. O verso curto tinha essa coisa de parar a toda a hora. O poema tem três partes, inferno, céu e paraíso, o que não é muito dantesco, é mais você flagrar num dia, no mesmo contacto furioso da existência, estes três níveis. Não há um céu onde existam acontecimentos bons, nem um inferno onde existem acontecimentos maus. É o mesmo acontecimento.

Disse uma vez que a sua profundidade é a da pele. Que o que lhe interessa é a imagem, e não ir além. Ainda se revê nesta formulação? A sua poesia é muito imagética, mas aqui também é auditiva.
É. Uma das coisas que me incomodava na minha poética inicial era o excesso de privilégio ao olhar. Era a grande influência do auto-modernismo. Tem um poema do Manuel Bandeira sobre uma maçã. Ele olha a maçã e parece que está fazendo um quadro, ela está ali congelada. Mas a poética será mais: que gosto tinha a maçã? Estava podre? Dura? Perfeitamente madura? Aí é preciso convocar outros sentidos. O táctil, o auditivo.

O poema como experiência completa.
Outro dia ouvi um escritor uruguaio a justificar o acto de fumar. Dizia que dos quatro elementos, o nosso corpo é 70 ou 80 por cento de água, a gente pisa na terra, e o ar está por todo o corpo. O fogo é o único elemento que nos repele, é nosso inimigo, e fumar seria o único modo de termos o quarto elemento dentro. Ao fumar você tem o seu próprio fogo e solta fumaça, mantendo a relação. Não recomendo a ninguém que comece a fumar por isso, mas achei muito bom. Não são mais os sacrifícios incas, aztecas de queimar as pessoas com fogo, mas esse fogo quotidiano, comum do cigarro. Porque de certa forma hoje vivemos de relações empobrecidas. Não que antes tenham sido melhores, talvez tenham sido apenas mais assassinas e exageradas, e agora sejam mais medíocres.

É fumador?
Não, nunca fumei.

A relação forte com a imagem também vem de ter querido ser pintor, e isso está na sua poesia desde "As Banhistas" à Vieira da Silva, ao Goya.
Eles são inspiradores, o que eu chamo os "Aliados Substanciais", que é o nome de um livro do René Char só sobre pintores. Quando vejo cadernos com desenhos acho que fica muito mais bonito.Tem uma poeta francesa que foi ao Brasil e esqueceu a máquina fotográfica e desenhou tudo o que via. Desenhava muito bem. É um dom que sempre invejei. Eu escrevia redacções, poemas, mas tem sempre aquele garoto na escola que sabe desenhar cavalos de forma realista, coisas lindas. Sempre achei que era para aquilo que tinha nascido, mas sem nenhuma habilidade manual. Você vê um quadro abstracto de Max Ernst, mas aí ele dá um título, "O que as mulheres gritam ao atravessar um rio", e isso é instigador, sempre parece que a partir daí qualquer um pode criar um poema. Às vezes como professor e director de oficinas literárias eu levo esse título e digo para cada um escrever um poema, e vêm as experiências mais diversas, mais líricas. Parece que a pintura e a música são propiciatórias. Nunca estive no Chile, e tem uma música em que, de cada vez que eu boto, vejo uma rua que tenho a certeza que é no Chile. E o artista plástico, é como se tivesse escolhido o melhor momento que sugira o que aconteceu antes e o que vai acontecer depois. Havia toda uma série de momentos para pintar, mas ele escolheu aquele. Aí, a literatura, que é uma arte temporal, pode-nos dar conta do que veio e virá. Se a Vieira da Silva faz um quadro como "Jogadores de cartas", começamos a imaginar o que pode acontecer depois, o que estão pensando, de onde vieram. Sempre pensei que eram momentos mágicos, escutar música ou olhar pintura. Mas nunca tive vontade de ser compositor, me parece muito trabalhoso. Para a pintura não tive talento, para a música não tenho paciência.

Que relação tem com outras possibilidades de passar a poesia, como a performance, a videoarte?
Não nasci com essas novas tecnologias.

É um desconforto?
Não, eu adoro. Por exemplo, ainda comprei disco de vinil, depois passei para o CD, mas vejo que agora as pessoas nem compram disco, já baixam as músicas pelo computador, que é uma relação que eu não tenho, a minha é mais artesanal. Mas admiro muitíssimo.Também já acontece com parte do que faz. O poema "O tubo" só existe online, e eu posso lê-lo como pode alguém em Timor. Isso é revolucionário e adoro que as novas gerações já dominem isso. Não sei se foi o Caetano que falou que a Internet é uma grande sessão de cartas. No jornal sempre existe aquela secção onde as pessoas vão colocar suas dúvidas, e a Internet é uma sessão mundial de cartas. O que é interessante. Também existe muito ressentimento. No Brasil existe uma série de blogues "Eu odeio". Você pega e coloca tudo o que você odeia: eu odeio a Rede Globo, eu odeio o Roberto Carlos. Mas há um elemento que eu adoro: digito "poesia peruana contemporânea" e em três segundos tenho uma centena de poetas. Se descobrir um, já é uma descoberta. Mas também não perco muito tempo com o computador, me policio. Adoro ficção científica e um dos autores que leio é o Stanislaw Lem, o autor de "Solaris". Ele deu uma entrevista a um repórter muito animado com as novas tecnologias que lhe perguntou se estava contente com o facto do mundo estar cumprindo quase tudo o que ele dizia. E ele respondeu que não gostava, não achava o mundo contemporâneo muito interessante. O rapaz falou no computador, na Internet. E o Lem disse: "Eu posso ir a um buscador e escrevo a palavra felicidade, e ele dá-me dois milhões de textos sobre a felicidade. Mas em que é que isso me aproximou da felicidade?" E talvez me tenha afastado, porque vou perder o tempo todo lendo aquilo. Então, eu gosto daquilo, mas é bom também relativizar.

Mantém a mesma relação com os criadores da sua idade? Como é que eles olham para a nova geração? Também dialogam?
Em alguns casos felizmente sim, como o Arnaldo Antunes.

Que é um herói para os novos.
A recepção dele foi exemplar, recebeu-os muito bem, e é visto como um ídolo por eles. Mas boa parte da minha geração, que talvez achasse que a poesia devia terminar neles, recusa-se a ler, ou quando lê acusa. Teve uma reacção muito negativa à chegada dos novos poetas. Toda a revista que aparece entra sempre num sistema de abraços, tapinhas nas costas, parabéns, nenhuma é muito questionada. A "Modo de Usar" teve uma defesa grande de alguns poetas, mas também um ataque dos poetas da minha geração, que é absolutamente incompreensível e eu só posso ler como reacção a algo muito forte. Também fui acusado de abrir muito as portas da "Inimigo Rumor", que já tem 10 anos, a essa poética, convidei-os a editarem a revista, e isso foi tomado como quase uma traição. Foi incrivelmente mal recebido. Vejo isso como sintomático da força dos novos poetas, porque no sistema literário brasileiro quem chega sem incomodar é porque vai repetir o já feito, e todo o mundo fica satisfeito com aquele mínimo logro que já conseguiram: não me incomode que eu não te incomodo, me elogia que eu te elogio, vamos fazer o mesmo. E ninguém sai muito daquela pequena festa nossa. Quando aparece algo que sai fora disso, as reacções são estarnhas. Para mim nada foi melhor que a chegada desses poetas.

Que nomes daria para quem quiser ler o que se está a escrever?
Para usar nomes novos, na área experimental gosto de um poeta como Ricardo Aleixo. Na área mais do verso, do papel, um poeta de Minas - terra do Drummond -, Walter Gam. Se essa expressão poética da indeterminação, criada pela crítica americana Marjorie Perloff faz algums sentido na poesia brasileira, para mim é na poesia do Walter Gam, do informe, como dizia o Bataille. Gosto de Daniela Storto, essa não tem nem livro, é um raro caso de poeta que em vez de estar ansiosa pela estreia preserva o seu ineditismo. Acho que ela só vai querer estrear aos 40 anos, mas faz poemas fabulosos.

A Juliana Krapp [poemas disponíveis online na "Modo de Usar"] também não publicou um livro ainda.
Ainda não. Também é algo que vejo como uma diferença. A minha geração estava ansiosa para estrear e queria publicar. Os poetas concretos publicaram os primeiros livros aos 19 anos. Era quase obrigatório que os poetas marginais não tivessem mais de 30. Havia até uma canção: Não confiem em ninguém com mais de 30 anos. Talvez fizesse sentido porque quando passaram dos 30 ficaram desinteressantes, como se todo o poder estivesse na juventude eles. Mas esses poetas novos de agora têm uma força que me impressiona, o objecto-livro para eles não é um fetiche. Se existe um poema na revista, se o blogue "Modo de Usar" coloca alguma coisa, se alguém leu um poema deles em algum programa de televisão, tudo bem. Talvez tenha a ver com esse gosto pelo informe, e por você não dominar completamente para onde vão as suas coisas. O livro é uma forma de organizar, de guardar a memória, de eternizar, e a preocupação deles com isso é mínima. Isso também existe muito na poesia argentina, ou então a produção de tiragens ultramínimas, 18 exemplares. Houve uma mudança. Talvez tenha a ver com a tecnologia, ou outra relação com a vida, com os amores. A não preocupação com a monumentalização e a perenização, um quase júbilo por ver que nossas atitudes, nossos poemas, nossas relações estão escapando a qualquer forma de controle, talvez esse seja o melhor aprendizado que tive com eles. E talvez isso seja o que incomode tanto quem nasceu sob a égide do controle e do projecto. Tem uma frase do escritor servo-croata Danilo Kis: "Quem acerta o alvo erra o resto todo." Eu me sinto como se viesse de uma geração que queria acertar o alvo e agora se dá conta que isso é perder o resto, enquanto que esses poetas parece que eles atiram ao acaso sem se importarem onde vão acertar - porque sabem que onde quer que caia é o lugar certo para cair.

É um grupo em que aparece o alemão, o espanhol, o inglês, os americanos, há um cosmopolitismo evidente, incluindo uma relação forte com a língua francesa, por exemplo na Marília Garcia. E o Carlito, que traduziu vários autores franceses, chegou a dizer que o verso lhe vem em francês.
Existe um poeta como Nelson Ascher que é filho de pais húngaros, e o diálogo dele é com o leste europeu, lançou uma antologia de poesia húngara fabulosa, e traduz muitas coisas. Ou Josely Vianna Baptista, que é muito ligada ao neo-barroco hispano-americano e traduziu Lezama Lima, Severo Sarduy. Existe a turma mais germanófila. E tudo isso saiu daquilo de que falei, uma época de muitas traduções - e hoje é um ritmo imparável. É o único aspecto de globalização interessante. Estamos preparando um número de "Inimigo Rumor" com poetas japoneses dos anos 70 para cá. O francês, no meu caso, é um pouco biográfico. Matriculei-me cedo na Aliança Francesa porque era perto da minha casa. Depois um professor te apresenta Flaubert e você fica maravilhado, e depois ler o Rimbaud sem precisar de esperar por tradução era uma coisa fantástica. O que acontecia é que no século XX a poesia francesa não me entusiasmava muito. Ou porque era a quinta geração surrealista - a primeira eu ainda gosto -, ou por um excesso de metáforas. Até que surgiu uma geração nova: Nathalie Quintane [1964], Christophe Tarkos [1963-2004], Philipe Beck [1963]. Essa geração cria uma coisa espantosa que tem muito que ver com Gilles Deleuze. Deleuze falava em literatura menor e em língua menor. Para escrever em literatura menor não é preciso viver num país de língua menor. Uma literatura menor é escrever em francês como se o francês não tivesse passado pela mão de Flaubert, Stendhal, Rimbaud, Verlaine. O que eles fazem é uma poesia que já foi definida como a audácia da banalidade. Algumas pessoas devem-se perguntar se é poesia mas para mim é muito interessante. Eles têm uma coisa que aprenderam com o Deleuze, que é a reptição, ou com a Getrude Stein, que é o "ritornello", aquela volta obsessiva ao mesmo núcleo: "Eles se beijam, ele a beija, eles se beijam, ela põe a língua em sua língua..." E em geral resulta em poemas longos e em muitos livros. Têm 10, 20 livros, sem estarem muito à espera do grande momento poético.
Comecei a traduzir esse poetas porque me pareceram uma alternativa crítica boa ao modelo americano que foi dominante na poesia brasileira, poetas como Robert Creeley, que são excelentes - mas parecia que todos os brasileiros queriam ser como eles, os americanos de vanguarda, com aquele poema curto, objectivista. Mas a gente já tinha passado pela poesia concreta, pela poesia mínima de notação dos marginais. O que existia agora era uma vontade de falar, de escrever muito e de falar. Você pode falar muito sobre os poetas novos menos que são minimais. O último livro do Ricardo Domeneck, "A cadela sem logos", é um longo poema, desdobra-se em várias partes. Nesta geração, os poemas tendem a unir-se uns aos outros, não ter uma independência muito fechada. Nesse sentido, traduzir a poesia francesa ou hispano-americana gera mais dizer e menos contenção. O Brasil era tão barroco que a poética virou minimalista. Há uma história: um mestre do Haikai foi visitado por um poeta novo que lhe mostrou um haikai: "Duas montanhas, o sol brilha sobre as duas." E o mestre disse: "Tem montanha demais." Essa era a lição que a gente tinha na cabeça, sob os concretos e a poesia marginal, como se no mínimo fragmento estivesse o máximo. Como disse o Jean Cocteau, a arte está sempre mudando de lado, como o sujeito de noite está sempre procurando o lado mais fresco do travesseiro. Parece-me que o frescor hoje se encontra em falar muito, escrever muito e não mais a gente se obrigar a essa greve de fome, a esse minimalismo. Só que para isso é necessário trazer exemplos eficazes, se não vira uma verborragia. E foi contra a tendência verborrágica que surgiram as poéticas cabralina e marginal, como reacções ao discursivismo, ao beldizer. Para mim, traduzir a poesia francesa era mostrar formas eficazes do discurso, mostrar que também se podia fazer poemas longos que não fossem um exagero de montanhas.

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