domingo, 28 de fevereiro de 2010

sobre Lourenço Mutarelli

por Manoel Ricardo de Lima (Jornal do Brasil, 19.02.10)

O grande problema de uma narrativa está vinculado ao uso da imaginação, não só como saída, mas também como propósito. Uma das falências do que se tem visto normalmente em muito do que se escreve mais perto, Brasil afora ou por dentro, e que ainda chamamos de prosa, com toda a negação de qualquer ideia de distância, é uma abundância da falta de uso da imaginação e a cola num realismo simplista e embaraçoso. Milan Kundera defendia a tese da imaginação para o romance aproximada de sua arquitetura, numa linha contaminada; para ele, a imaginação tem a ver diretamente com uma brincadeira ontológica, com rasgar a cortina para que o mundo se abra com toda a sua nudez. O exemplo de Kundera é vertiginoso: Alonso Quijada, o Quixote. O fato é que este observatório inteligente da narrativa descambou por aqui para algo pouco pretensioso, feito de qualquer jeito, sem pertinência ou imprecisão, que seja, sem “estrada herdada”, sem biblioteca, sem vida, sem projeto para uma transparência que desfaça essa marca fixada do espelho.

Os últimos livros de Lourenço Mutarelli publicados no fim de 2009 – a reedição de O natimorto (que saiu antes em 2004, pela DBA) e Miguel e os demônios – inserem a discussão acerca deste problema numa esfera interessante. Não só porque são narrativas muito coladas numa ideia rápida de transposição para o cinema, quase roteiros, como também apontam para um dado comum dos textos de Mutarelli, que é a ligação com o universo das histórias em quadrinhos, as que o formou como desenhista e escritor de argumentos e as suas próprias HQ's. Desde a disposição das frases na página, um desenho marcado pelo diálogo, a respiração curta e quase ofegante, a pauta oral e vulgar das conversas, nenhuma grande elaboração e um traço abrupto às cenas, mas um recheio de questões pertinentes como é uma boa história em quadrinhos; ao mesmo tempo, é óbvio que enfrentar uma ausência da cena não daria, talvez, numa narrativa de quem tem essa trajetória do desenho, nem muito menos de quem tem interesse em já direcionar seus livros para o cinema. O importante aqui é a cena, construir a cena.

O natimorto trata da relação entre uma mulher que supostamente canta com uma voz tão pura que ninguém consegue ouvi-la e um homem que é o seu agente e que diz amá-la tão puramente quanto é a sua voz. Ninguém parece ouvi-lo também. Trancafiados num quarto de hotel porque a vida se despedaçou em algum lugar, outra trama se arma numa dilaceração amorosa e possessiva que segue o percurso dos arcanos do tarô ou das imagens de maços de cigarro. Há passagens interessantíssimas, como algumas das lucubrações do agente: “Quanto pesa um fêmur? Acho que não chega a um quilo. Não, um fêmur deve pesar uns 500 gramas. E um crânio?”. Mas há as passagens que delatam o impasse e se apagam sozinhas: “Estamos sempre no mesmo lugar. Permaneço. Presente. O presente, tudo o que nos resta. Somos como o menino que constrói castelos de areia. Aguardamos a materialização para podermos destruir tudo o que construímos à nossa volta. Essa é a nossa natureza: somos destruidores. Somos o câncer do mundo. Venceremos quando nada restar”. E por aí vai.

Miguel e os demônios é uma narrativa que encosta o texto num precipício que pode beirar a imaginação, desde sua dureza até o uso incomum de um pensamento elaborado para a personagem que sugere. Miguel é um policial. Num hábito de detetives que pensam seguindo um princípio da lógica, tenta esticar conversas com Osvaldo, um repórter curioso com as façanhas e historietas de uma polícia desfeita, para minimamente observar melhor as coisas ao seu redor: o pai doente, os descontroles amorosos da paixão, um nome, outro nome, uma seita, talvez o diabo, a vida mais perto do chão, um tempo cru e sem suspensão alguma para o encantamento etc. Como quando pergunta a Osvaldo, numa secura prenhe: “O que é o mal?”. E mesmo que a explicação de Osvaldo se arraste numa curva canhestra, o mais interessante é o improvável da conversa, de como ela se monta, de como Mutarelli, hábil e inteligentemente, conduz o traço. Como também na última cena da narrativa, quando Miguel, Osvaldo e Pedro, outro policial, demarcam talvez uma espécie de gran finale para a imaginação: não matar, enterrar vivo, entregar para a terra. Neste livro, Mutarelli se aproxima do melhor de suas histórias em quadrinhos, como O dobro de cinco ou A soma de tudo.

O lance talvez seja – numa questão – como sair da cena, como desmontar a cena. Deixar a imaginação respirar. O escritor português Gonçalo Tavares num verbete do seu Biblioteca anota o seguinte quando inscreve o nome de Edgar Allan Poe: “A imaginação não é uma questão de habilidade. É mais uma questão de levantar as coisas do seu sítio e ver o que elas escondem debaixo. Como se faz a uma pedra. Se levantares uma pedra pesada do jardim, verás que debaixo dela está um pedaço de terreno de cor diferente da relva restante do jardim. Mais esbranquiçada, com ar mais doente: o sol não passou por ali. A imaginação? A imaginação é o sol também passar por ali”. Como é a caixa da infância, com seu buraco sem fundo, em A caixa de areia, outra das mais interessantes HQ's de Lourenço Mutarelli. O lance, ali, é este: imaginar livremente, sair da cena, armar outra coisa. Por fim, Milan Kundera ainda diz ao comentar sobre Cem anos de solidão, de García Márquez, de uma imaginação livre, “de um narrador que não descreve nada, que só faz contar, mas conta com uma liberdade de fantasia que nunca se viu antes”; ou quando diz do Ulisses, de James Joyce, que é um “escândalo existencial da insignificância”.

Ver também: http://jbonline.terra.com.br/pextra/2010/02/19/e19028005.asp

Nenhum comentário:

Postar um comentário