quarta-feira, 6 de março de 2013

suplemento pernambuco,


PERNAMBUCO, Suplemento Cultural [Março/2013]. Entrevista

A literatura como uma armadilha a ser construída
por Yasmin Taketani              

Textos breves, impregnados de tensão, cujos enredos nem sempre são revelados e os personagens, muitas vezes, não possuem nome, origem, presente ou futuro. Assim são as narrativas que compõem Jogo de varetas(7Letras), de Manoel Ricardo de Lima, e que dialogam constantemente com o jogo em si: o risco de manejar varetas pontiagudas e o breve instante em que um erro leva a brincadeira ao fim. Simultaneamente, o escritor, nascido em Parnaíba (PI), em 1970, lançou uma nova edição de As mãos(7Letras), em que o protagonista-narrador permanece isolado em sua casa após ter sido abandonado pela mulher e se coloca em guerra contra si mesmo e o mundo, restando a ele rememorar a felicidade.
Assim como espera e — à medida que suas histórias não são dadas de bandeja — exige que o leitor interfira nesses livros, Lima, que atualmente vive no Rio de Janeiro, onde é professor de literatura brasileira na UNIRIO, está constantemente fazendo intervenções em seu trabalho e buscando nas impossibilidades da língua e da forma distância de uma “literatura permitida”. Autor ainda, entre poesia e prosa, de Embrulho e Quando todos os acidentes acontecem, Manoel Ricardo de Lima fala nesta entrevista sobre a “implicação” que procura criar em seus livros e critica o conformismo predominante na literatura.

Os textos de Jogo de varetas possuem a tensão e a dinâmica características desse jogo: são curtos, de duração mínima, como os instantes breves mas decisivos que marcam o jogo. Em que momento a relação com o jogo surgiu para articular os textos?
Procurava numa loja de brinquedos um presente para dar a um afilhado, Lorenzo, que hoje tem cinco anos. Sem querer cheguei num jogo de varetas de plástico, sem pontas, sem risco algum. Não comprei o jogo pra ele, claro. Compramos dinossauros, que parecem mais vivos. Mas isso me colocou um problema para os impasses do corpo e sua aderência ao mundo. E, grosso modo, também, não posso desprezar a ideia de que toda literatura é jogo. Ao contrário, assumo: é jogo alargado. E é aí que está qualquer noção de risco, de azar, de acidente, de fissura e de espessura, por exemplo. Por isso imagino que todo o meu trabalho, desde o começo, tem a ver um pouco com essa ideia de traçar uma linha impertinente em busca de uma “terceira forma”, de uma “outra coisa”. Sempre penso nas impossibilidades da língua e nas impossibilidades da forma. Assim, a partir dessas impossibilidades, escapo em direção a um trabalho que tenha a ver diretamente com uma contaminação para tentar compor uma disseminação entre a máquina social e a máquina técnica. E esse pequeno achado irrisório, do jogo de varetas de plástico, foi uma espécie de clave pra eu começar a elaborar esse conjunto de peças que se perguntam o tempo inteiro como provocar intervenções críticas no funcionamento absurdo dessa engrenagem em que estamos metidos até o pescoço.

Sem enredo explícito, com personagens dos quais pouco sabemos e com narradores que mais colocam dúvidas sobre suas histórias do que apresentam fatos, as narrativas de Jogo de varetas são “fugidias” e o sentido muitas vezes escapa. Mais do que um enredo, imagens e sensações marcam os textos. O que impulsiona sua escrita nessa direção?
Eu penso, sem parar, que toda literatura não é senão uma das armadilhas que temos para constituir margens de manobra do político no mundo agora. Mais ou menos seguindo a pista de Kafka: que escrevia para não morrer ou, pelo menos, para morrer de outra maneira; e que disse que não vivemos num mundo destruído, mas transtornado, onde tudo racha e estala. É esta movência transtornada que me interessa tocar. Tento criar pontos de estrangulamento do sentido e algumas séries de interferências na linha reta do progresso e na manutenção da catástrofe operadas pela vida presente. Quero criar um tempo quando o sentido colapsa, entra em colapso. Acho que é por isso que nunca penso em construir uma explicação, mas sim uma implicação com a desordem do mundo (e não para ordená-la) para armar um pensamento mais lacerado sobre esse tempo em que estamos, em que somos. Gosto da ideia de que meu trabalho pode ir em direção à armadilha do pensamento também como uma convicção do político: o que é, quando é, como é, onde é, etc., estar no mundo. De algum modo, e com força, atacar a lógica do tempo e da história, desfazer as cronologias e sugerir algumas vacilações, acidentes e sobrevivências.

A partir desta proposta, qual a relação que você pretende estabelecer com o leitor?
Não tenho como pensar no leitor enquanto trabalho, nem quero saber se ele existe. E acho que se um dia quiser construir relações com um suposto leitor devo de fato começar a fazer outra coisa, porque provavelmente terei me tornado um negociador ou um arrivista. Gosto muito do que diz a Silvina Rodrigues Lopes no seu livro Literatura, defesa do atrito: “é importante indagar de perto: trata-se da adaptação de grande parte daqueles que se apresentam como escritores às condições institucionais dominantes e ao mercado, o que significa que não produzem senão simples objetos de consumo, ao nível de qualquer outro artigo de supermercado”. Ou seja, estou fora. E o leitor, para mim, é sempre aquele que vem, e não aquele que lê apenas o que está na prateleira mais próxima e na altura de seus olhos.

As mãos pode ser lido como uma novela ou como textos autônomos e Jogo de varetas é composto por narrativas curtas, de linguagem poética. A questão dos gêneros textuais é uma preocupação sua — ainda que seja para negá-los? As formas de narrativa tradicionais já não conseguem dar conta da realidade?
André Malraux, em seu O museu imaginário (1965), rearmava a ideia da “ilusão das coisas representadas” no instante em que a arte moderna se problematiza como aquilo que leva a nada. Isto é a modernidade: aquilo que leva a nada. Os gêneros já estavam todos rachados ali, nessa emboscada. E acho que todas as insistências nessas discussões agora — dos gêneros, de literatura e realidade, das narrativas tradicionais ou a tentativa desvairada de encontrar um livro que demarque uma geração — não passam de sintomas precários do mercado editorial para a manutenção desse lugar fabricado, meio insosso, que se costuma chamar de “cena literária”. Expressão que me parece um contrassenso; ainda mais se entendemos que toda literatura não é senão obs-cena, ou seja, está fora da cena. A minha preocupação é que meus textos possam se manter longe dessa literatura permitida e possam expandir os usos autônomos da palavra até o ponto mais violento de sua dilaceração. Gosto de imaginar que, com eles, posso montar um cinema, rasgar uma parede e expandir uma imagem; gosto de mover meu trabalho numa a-funcionalidade entre as formas de vida do mundo presente e a vida das formas como uma aventura.

Na “Ameaça”, texto introdutório que abre Jogo de varetas, você escreve que “agora, vende-se varetas de plástico e sem ponta (...), logo não furam (...), não têm risco algum”. É possível traçar aí um paralelo com a literatura brasileira contemporânea? Falta um trabalho de linguagem mais radical, arriscar e experimentar mais?
Sempre vai faltar, ainda mais quando o nível de recusa anda baixíssimo. Mas o que me perturba é que chamam de literatura brasileira contemporânea apenas aquilo que aparece nos jornais ou nas revistas quase sempre comprometidos em noticiar a oferta do dia que sai nas resenhas dos próprios blogs e sites de grandes editoras. E aparecem coisas terrivelmente conservadoras e tardias como se fossem novidade (mas aí, é bom que se diga, novidade não é o mesmo que “novo”), espalhando aos quatro ventos todo o lugar-comum que este circuito fragilizado solicita. O leitor médio é domesticado por táticas de venda e consumo. Depois, este país sofre do mal da distância, é enorme e geralmente emperrado por causa de políticas públicas cretinas e com a maior parte de sua população vivendo sob uma “placa de chumbo de miséria” (que é uma potente imagem dita pelo Carlito Azevedo). Fica muito fácil conformar qualquer série numa vizinhança geográfica, econômica, noticiosa e praticamente oportunista. E mais fácil ainda conformá-la goela abaixo de nosso sistema provinciano a partir do interesse de algumas editoras ou revistas estrangeiras que determinam até a idade dos autores que pretendem publicar. A “ameaça” de meu livro é muito mais a mim mesmo, não posso esquecer duas pequenas coisas que a Silvina R. Lopes diz melhor do que eu: 1 - “É preciso impedir que a banalidade que aparece hoje consensualmente como literatura não se arrogue em breve um direito de exclusividade” e 2 - “Quando um escritor aceita o lugar de símbolo, dispondo-se a ser homenageado pelo poder político, aceita uma forma de cooperação com o inimigo, colocando-se a si próprio contra a obra que escreveu, se ela existir”.

Apesar de seus últimos trabalhos serem em prosa, há uma proximidade com a poesia e mesmo elementos, temas e um estilo que podem ser observados em Quando todos os acidentes acontecem, por exemplo. Como é a relação entre o poeta e o prosador?
Prosador é aquele que experimenta e inventa com a linguagem para provocar uma temporalidade impermanente, e não aquele que conta historinhas firmadas num enredo com começo, meio, fim, lugar e enfado. E entendo o poeta da mesma maneira. O que produzem, um e outro, é isso que podemos chamar de POESIA, ou seja, trabalho de poeta: “uma maneira de sair da maioria”. Se entendemos que “toda poesia é destituição”, ou seja, queda; e se a prosa não passa dessa queda do poema no comezinho, no quase nada, no prosaico, não é preciso ir muito longe para dizer que não há relação, porque não há nenhuma diferença. Meus livros perseguem um pouco isso, todos, sem exceção. Leminski serve bem como exemplo. As leituras críticas de seu trabalho são tão simplórias e quase anódinas, porque separam o poeta do prosador, o poeta do ensaísta, o ensaísta do biógrafo etc. Ora, o Leminski fez tudo numa zona contaminada como forma de resistência para enfrentar a adaptação e a domesticação do pensamento. Mas mesmo assim, em nome de uma acessibilidade recorrente, alocam seu trabalho num lugar conformado e funcional e perdem de vista sua ironia afirmativa. Tudo o que me interessa propor e discutir gira em todos os meus livros, faz girar os meus livros. O meu esforço é para não escrever livros ingênuos, porque vivemos num tempo em que não podemos escrever livros ingênuos.

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