PERNAMBUCO, Suplemento Cultural [Março/2013]. Entrevista
A literatura como uma armadilha a ser construída
por Yasmin Taketani
Textos
breves, impregnados de tensão, cujos enredos nem sempre são revelados e os
personagens, muitas vezes, não possuem nome, origem, presente ou futuro. Assim
são as narrativas que compõem Jogo de varetas(7Letras), de Manoel Ricardo de
Lima, e que dialogam constantemente com o jogo em si: o risco de manejar
varetas pontiagudas e o breve instante em que um erro leva a brincadeira ao
fim. Simultaneamente, o escritor, nascido em Parnaíba (PI), em 1970, lançou uma
nova edição de As mãos(7Letras), em que o protagonista-narrador permanece
isolado em sua casa após ter sido abandonado pela mulher e se coloca em guerra
contra si mesmo e o mundo, restando a ele rememorar a felicidade.
Assim
como espera e — à medida que suas histórias não são dadas de bandeja — exige
que o leitor interfira nesses livros, Lima, que atualmente vive no Rio de
Janeiro, onde é professor de literatura brasileira na UNIRIO, está
constantemente fazendo intervenções em seu trabalho e buscando nas
impossibilidades da língua e da forma distância de uma “literatura permitida”.
Autor ainda, entre poesia e prosa, de Embrulho e Quando todos os acidentes
acontecem, Manoel Ricardo de Lima fala nesta entrevista sobre a “implicação”
que procura criar em seus livros e critica o conformismo predominante na
literatura.
Os textos de Jogo de varetas possuem a
tensão e a dinâmica características desse jogo: são curtos, de duração mínima,
como os instantes breves mas decisivos que marcam o jogo. Em que momento a
relação com o jogo surgiu para articular os textos?
Procurava
numa loja de brinquedos um presente para dar a um afilhado, Lorenzo, que hoje
tem cinco anos. Sem querer cheguei num jogo de varetas de plástico, sem pontas,
sem risco algum. Não comprei o jogo pra ele, claro. Compramos dinossauros, que
parecem mais vivos. Mas isso me colocou um problema para os impasses do corpo e
sua aderência ao mundo. E, grosso modo, também, não posso desprezar a ideia de
que toda literatura é jogo. Ao contrário, assumo: é jogo alargado. E é aí que
está qualquer noção de risco, de azar, de acidente, de fissura e de espessura,
por exemplo. Por isso imagino que todo o meu trabalho, desde o começo, tem a
ver um pouco com essa ideia de traçar uma linha impertinente em busca de uma
“terceira forma”, de uma “outra coisa”. Sempre penso nas impossibilidades da
língua e nas impossibilidades da forma. Assim, a partir dessas
impossibilidades, escapo em direção a um trabalho que tenha a ver diretamente
com uma contaminação para tentar compor uma disseminação entre a máquina social
e a máquina técnica. E esse pequeno achado irrisório, do jogo de varetas de
plástico, foi uma espécie de clave pra eu começar a elaborar esse conjunto de
peças que se perguntam o tempo inteiro como provocar intervenções críticas no
funcionamento absurdo dessa engrenagem em que estamos metidos até o pescoço.
Sem enredo explícito, com personagens dos
quais pouco sabemos e com narradores que mais colocam dúvidas sobre suas
histórias do que apresentam fatos, as narrativas de Jogo de varetas são
“fugidias” e o sentido muitas vezes escapa. Mais do que um enredo, imagens e
sensações marcam os textos. O que impulsiona sua escrita nessa direção?
Eu
penso, sem parar, que toda literatura não é senão uma das armadilhas que temos
para constituir margens de manobra do político no mundo agora. Mais ou menos
seguindo a pista de Kafka: que escrevia para não morrer ou, pelo menos, para
morrer de outra maneira; e que disse que não vivemos num mundo destruído, mas
transtornado, onde tudo racha e estala. É esta movência transtornada que me
interessa tocar. Tento criar pontos de estrangulamento do sentido e algumas
séries de interferências na linha reta do progresso e na manutenção da
catástrofe operadas pela vida presente. Quero criar um tempo quando o sentido
colapsa, entra em colapso. Acho que é por isso que nunca penso em construir uma
explicação, mas sim uma implicação com a desordem do mundo (e não para
ordená-la) para armar um pensamento mais lacerado sobre esse tempo em que
estamos, em que somos. Gosto da ideia de que meu trabalho pode ir em direção à
armadilha do pensamento também como uma convicção do político: o que é, quando
é, como é, onde é, etc., estar no mundo. De algum modo, e com força, atacar a
lógica do tempo e da história, desfazer as cronologias e sugerir algumas vacilações,
acidentes e sobrevivências.
A partir desta proposta, qual a relação que
você pretende estabelecer com o leitor?
Não
tenho como pensar no leitor enquanto trabalho, nem quero saber se ele existe. E
acho que se um dia quiser construir relações com um suposto leitor devo de fato
começar a fazer outra coisa, porque provavelmente terei me tornado um
negociador ou um arrivista. Gosto muito do que diz a Silvina Rodrigues Lopes no
seu livro Literatura, defesa do atrito: “é importante indagar de perto: trata-se
da adaptação de grande parte daqueles que se apresentam como escritores às
condições institucionais dominantes e ao mercado, o que significa que não
produzem senão simples objetos de consumo, ao nível de qualquer outro artigo de
supermercado”. Ou seja, estou fora. E o leitor, para mim, é sempre aquele que
vem, e não aquele que lê apenas o que está na prateleira mais próxima e na
altura de seus olhos.
As mãos pode ser lido como uma novela ou
como textos autônomos e Jogo de varetas é composto por narrativas curtas, de
linguagem poética. A questão dos gêneros textuais é uma preocupação sua — ainda
que seja para negá-los? As formas de narrativa tradicionais já não conseguem
dar conta da realidade?
André
Malraux, em seu O museu imaginário (1965), rearmava a ideia da “ilusão das
coisas representadas” no instante em que a arte moderna se problematiza como
aquilo que leva a nada. Isto é a modernidade: aquilo que leva a nada. Os
gêneros já estavam todos rachados ali, nessa emboscada. E acho que todas as insistências
nessas discussões agora — dos gêneros, de literatura e realidade, das
narrativas tradicionais ou a tentativa desvairada de encontrar um livro que
demarque uma geração — não passam de sintomas precários do mercado editorial
para a manutenção desse lugar fabricado, meio insosso, que se costuma chamar de
“cena literária”. Expressão que me parece um contrassenso; ainda mais se
entendemos que toda literatura não é senão obs-cena, ou seja, está fora da
cena. A minha preocupação é que meus textos possam se manter longe dessa
literatura permitida e possam expandir os usos autônomos da palavra até o ponto
mais violento de sua dilaceração. Gosto de imaginar que, com eles, posso montar
um cinema, rasgar uma parede e expandir uma imagem; gosto de mover meu trabalho
numa a-funcionalidade entre as formas de vida do mundo presente e a vida das
formas como uma aventura.
Na “Ameaça”, texto introdutório que abre
Jogo de varetas, você escreve que “agora, vende-se varetas de plástico e sem
ponta (...), logo não furam (...), não têm risco algum”. É possível traçar aí
um paralelo com a literatura brasileira contemporânea? Falta um trabalho de
linguagem mais radical, arriscar e experimentar mais?
Sempre
vai faltar, ainda mais quando o nível de recusa anda baixíssimo. Mas o que me
perturba é que chamam de literatura brasileira contemporânea apenas aquilo que
aparece nos jornais ou nas revistas quase sempre comprometidos em noticiar a
oferta do dia que sai nas resenhas dos próprios blogs e sites de grandes
editoras. E aparecem coisas terrivelmente conservadoras e tardias como se
fossem novidade (mas aí, é bom que se diga, novidade não é o mesmo que “novo”),
espalhando aos quatro ventos todo o lugar-comum que este circuito fragilizado
solicita. O leitor médio é domesticado por táticas de venda e consumo. Depois,
este país sofre do mal da distância, é enorme e geralmente emperrado por causa
de políticas públicas cretinas e com a maior parte de sua população vivendo sob
uma “placa de chumbo de miséria” (que é uma potente imagem dita pelo Carlito
Azevedo). Fica muito fácil conformar qualquer série numa vizinhança geográfica,
econômica, noticiosa e praticamente oportunista. E mais fácil ainda conformá-la
goela abaixo de nosso sistema provinciano a partir do interesse de algumas editoras
ou revistas estrangeiras que determinam até a idade dos autores que pretendem
publicar. A “ameaça” de meu livro é muito mais a mim mesmo, não posso esquecer
duas pequenas coisas que a Silvina R. Lopes diz melhor do que eu: 1 - “É
preciso impedir que a banalidade que aparece hoje consensualmente como
literatura não se arrogue em breve um direito de exclusividade” e 2 - “Quando
um escritor aceita o lugar de símbolo, dispondo-se a ser homenageado pelo poder
político, aceita uma forma de cooperação com o inimigo, colocando-se a si
próprio contra a obra que escreveu, se ela existir”.
Apesar de seus últimos trabalhos serem em
prosa, há uma proximidade com a poesia e mesmo elementos, temas e um estilo que
podem ser observados em Quando todos os acidentes acontecem, por exemplo. Como
é a relação entre o poeta e o prosador?
Prosador
é aquele que experimenta e inventa com a linguagem para provocar uma
temporalidade impermanente, e não aquele que conta historinhas firmadas num
enredo com começo, meio, fim, lugar e enfado. E entendo o poeta da mesma
maneira. O que produzem, um e outro, é isso que podemos chamar de POESIA, ou
seja, trabalho de poeta: “uma maneira de sair da maioria”. Se entendemos que
“toda poesia é destituição”, ou seja, queda; e se a prosa não passa dessa queda
do poema no comezinho, no quase nada, no prosaico, não é preciso ir muito longe
para dizer que não há relação, porque não há nenhuma diferença. Meus livros
perseguem um pouco isso, todos, sem exceção. Leminski serve bem como exemplo.
As leituras críticas de seu trabalho são tão simplórias e quase anódinas,
porque separam o poeta do prosador, o poeta do ensaísta, o ensaísta do biógrafo
etc. Ora, o Leminski fez tudo numa zona contaminada como forma de resistência
para enfrentar a adaptação e a domesticação do pensamento. Mas mesmo assim, em
nome de uma acessibilidade recorrente, alocam seu trabalho num lugar conformado
e funcional e perdem de vista sua ironia afirmativa. Tudo o que me interessa
propor e discutir gira em todos os meus livros, faz girar os meus livros. O meu
esforço é para não escrever livros ingênuos, porque vivemos num tempo em que
não podemos escrever livros ingênuos.
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