quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

sobre 'As Mãos', por Gustavo Rubim,

[revista Forma de Vida, n. 1 / Fev.2013 / Lisboa, Portugal]


Ninguém parece formar uma ideia de conjunto particularmente nítida acerca da prosa literária que se escreve agora em português. Talvez nem faça falta. Uma hipótese simples é a de que, salvo alguma obra de maior alcance público, parte dessa prosa esteja a renovar-se por via de experiências discretas. Experiências, naquele sentido em que a palavra se consagrou para designar a atitude que prefere avançar por tentativas do que pelo traçar de projetos.
De certo modo, é assim que Manoel Ricardo de Lima refere o âmbito e a história deste seu As Mãos no texto que escreveu para preâmbulo à 3ª edição do livro (Rio de Janeiro, 7Letras, 2012). De um lado, as três edições são experimentações diversas da mesma ideia textual, que começou em 2003 numa tiragem pequena, como o próprio autor cuida de explicar; de outro lado, essa ideia terá sido sempre um “desenho impreciso” traçando algo como “um limite entre o poema e a narrativa numa espécie de experiência móvel e desamparada” (p. 9). Mobilidade e desamparo que, entretanto, não dispensam o apoio ou a insistência de uma espécie de eixo entrelaçado, que ao leitor será fácil reconhecer, “em torno de uma guerra, de uma cidade e de uma história de amor”. Mas não é bem esse triplo fio narrativo que suporta um texto para o qual é visivelmente nas intensidades (não nos enredos) que tudo na escrita se joga. É sobretudo a força de algumas frases e de algumas imagens que mantém o texto em movimento — entre um “lugar de areia e escombro” que “está em guerra” (mas não há qualquer conflito militar para identificar, narrar ou descrever), no início, e uma circunscrita “vida sobre a mesa, entre a ferrugem e o tempo”, no final, que é aliás uma volta ao início e por isso a primeira e a última partes de As Mãos se chamam ambas “Um”.
Por isso e sobretudo porque quer no início, quer no fim, é só um quem está presente — algures no meio da guerra em que toda a cidade se converteu — escrevendo a história de amor cujo fim traz consigo como que o fim do mundo habitável. É uma tentação ver aqui, neste confinamento da voz narradora a si mesma, a essência daquele “limite” em que poema e narrativa se sobrepõem, como se o lírico tomasse conta do épico. Tanto mais que a catástrofe significada pelo malogro amoroso parece relançar uma certa rejeição do mundo que associamos, quanto mais não seja por convenção romântica, ao lirismo tomado enquanto mitologia do amor. Mas o texto não nos deixa cair na tentação. Por duas razões, pelo menos: 1) porque, fora a memória do encantamento passional e erótico, não há propriamente mitologia do amor na história relembrada nem no discurso que a relembra (aliás, com dificuldade, com resistência); 2) porque a imagem da “guerra”, a imagem da cidade como guerra e guerra suja, é uma parte dessa história, no sentido em que provém do discurso da mulher, sem nome, que entretanto desapareceu e do tempo em que com ela houve uma história de amor. “Está tudo molhado e podre no meio dessa guerra.” — é justamente uma fala dessa mulher, recuperada do tempo em que a história acontecia. A diferença (porém, não chega para uma mitologia) é que ela acrescentava: “Mas fácil de secar, (…) fácil de reter, de pôr na mão, de levar com carinho, de enviar com cuidado.
Essa facilidade de levar, ou essa afirmação da facilidade é o que se perdeu até deixar só a cidade com a sua guerra e o narrador com a sua “dor” e sobretudo com a presença das paredes que o circundam, “estas paredes” dentro das quais a própria cidade está confinada, de acordo com o emblema consignado no refrão da canção de Belchior que serve de epígrafe ao livro: “esta casa não tem lá fora / a casa não tem lá dentro”.
O narrador emparedado no meio da guerra urbana não é portanto um narrador lírico cultivando a nostalgia dos tempos felizes. É antes um homem que tenta romper pela escrita o isolamento deste mundo sem dentro nem fora de cuja violência só parece haver escapatória pela via do amor. Aliás, seria melhor dizer deste não-mundo, pois a palavra “mundo” já significa uma ordem qualquer humana ou humanizada, uma instância de vida em que seja possível a escolha, a distinção cuja expressão emblemática pode ser a frase que melhor recorda a presença da mulher que depois desapareceu: “Não se fica perto de quem não se conhece as mãos.” Conhecer as mãos é o sinal da proximidade, a condição ou até a cláusula para uma hipótese de comunidade, quer dizer, de vida comum, de vida que acolhe o outro como um, como o único ou o singular que o outro é. Trata-se portanto de uma cláusula em que a comunidade (a experiência da comunidade) não é dada enquanto óbvia ou natural mas, pelo contrário, se apresenta apenas na sua característica de raridade sujeita a requisito. Tudo o mais é guerra.
Ora, se esse reconhecimento da singularidade é a linha que subverte a guerra sem a combater, ele é ao mesmo tempo uma espécie de antena que nunca ilude quem de facto tem pela frente. Na memória do homem agora escritor, dominada pela “ofensa que o vazio deixa”, essa mulher declarava abertamente a solidão em que ficava na proximidade deste homem em quem uma incerta “dor” estava sempre presente: “’Não adianta nada’, costumava dizer, ‘nada, nada que eu faça retira esta dor que tem aí, nada que você faça retira a solidão que tenho aqui’. Isto pairava sobre nós, ‘Nada, absolutamente nada’”. O que pairava era portanto o falhanço anunciado da própria proximidade amorosa, como também se pode dizer que o que pairava era assim o nada ou a nulidade a ameaçar a promessa de plenitude, a promessa de mundo da história de amor: “Minha alegria era ela. Meu amor do mundo era todo para ela.”
De certo modo e por isso mesmo, quer dizer, por estar sempre situada ou desequilibrada entre promessa e ameaça, essa história de amor nunca chega a ser história, a não ser da maneira descosida em que alguns episódios ou menos que isso, algumas cenas (em particular, eróticas), algumas frases ou declarações mais enigmáticas (que “ela” proferia) assomam de novo à memória descontínua do narrador. A própria escrita da narrativa, que regularmente se vai comentando a si mesma, não se representa senão como “rabiscos, desenhos, cálculos sem prumo” ou “esta precaução chamada de anotações de lembrança para me manter vivo, por enquanto”. Uma escrita de sobrevivência, espécie de tábua de salvação amanhada com destroços. A prosa mesma tem algo de destroçado, como se fosse feita, em certos momentos pelo menos, de farrapos de frases, mais do que de sentenças inteiras: “Me debato aqui dentro, e dentro da casa, pelo corredor, até a cozinha, pelo quarto ou timidamente cometendo o percurso das janelas que se voltam para as paredes, estas, próprias, as donas da situação, se alguém visse tudo diria, não saberia como, mas diria, até porque, assim, isso, dessa forma, como pudessem, fossem, então, faço o quê, orientam minha mendicância, minha cisma”, etc. E não há aqui vestígio de qualquer vanguardismo serôdio que quisesse desfazer a linha sóbria, clássica, que uma parte da prosa brasileira e portuguesa continua a cultivar sob os já seculares auspícios de Machado ou de Eça. Bastaria ler quase qualquer um dos contos que Manoel Ricardo de Lima reuniu num volume intitulado Jogo de Varetas (7Letras, 2012), saído ao mesmo tempo que esta terceira versão de As Mãos (e ambos, aliás, com colaboração da portuguesa Rachel Caiano no desenho das capas), para comprovar que não escapa ao escritor o domínio dessa linha mais composta ou articulada. A língua desfeita de que parece tecer-se o texto de As Mãos surge então como se fosse a única língua possível a quem, no limite, nem escrever deseja, mas apenas “rabiscar enquanto isso me acalma o descontrole e o medo”.
Uma das últimas frases, um dos últimos bocados de frase de As Mãos diz simplesmente “me custa dizer”, para logo de seguida reforçar ou agravar: “me custa muito dizer”. Todo o texto se deixa ler guiado por essa dificuldade de dizer, que é ao mesmo tempo (e mais ainda) dificuldade de narrar e, afinal de contas, uma necessidade de lembrar toda assente na imensa dificuldade de lembrar, como se as “anotações de lembrança” por nada fossem motivadas que não fosse por uma violenta resistência à lembrança. No seu modo de procurar um contacto com o passado, para desenterrar aliás um passado em que houve mãos e contacto, o texto confronta-se com uma memória solta de fio temporal e apenas desencadeada pelos lugares em que resta um traço do que aconteceu. Mas que lugares subsistem para um emparedado além das paredes que o cercam? No fim de uma evocação erótica particularmente eufórica ou deliciada, são essas paredes que têm a última palavra e compreende-se que o sejam, porque na verdade só elas persistem do que entre elas se passou. Da mesma maneira: que história, capaz de fazer sentido, deixam o prazer e a alegria, quando aquilo que deixam é sobretudo o rasto de terem desaparecido? Narrar a alegria sob a memória do desastre é como querer escrever uma história esmulambada e condenar-se, portanto, a não encontrar no caminho da escrita senão “todos os molambos da memória”.

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