Jornal O Globo, caderno Prosa & Verso, em 1 de dezembro de 2012
Escritor lança
livros que fazem da imprecisão um recurso narrativo, com a cadência poética das
cenas se sobrepondo aos enredos
Por Maria
Esther Maciel*
Manoel Ricardo de Lima sempre foi
um escritor avesso aos modelos legitimados de narrativa, poema e ensaio.
Transitando livremente em diferentes formas de escrita, publicou livros que se
desviam da noção fixa de gênero literário, seja por mesclar registros textuais,
seja por criar outra coisa, difícil de definir com precisão. Esse é o caso dos
dois volumes que acaba de lançar pela editora 7Letras: “As mãos”, uma novela
que também pode ser lida como um conjunto de escritos avulsos, e “Jogo de
varetas”, constituído de 23 pequenos textos poético-narrativos, associados pelo
autor às hastes coloridas de um jogo de varetas.
O primeiro livro já tinha sido
publicado em 2003 e 2006. Desde a primeira edição, sofreu sucessivas
intervenções de artistas visuais e sonoros que releram fragmentos da obra a
partir de distintos enfoques criativos. Segundo o autor, que hoje é professor
de literatura brasileira da UniRio, o livro acabou por se tornar outro graças a
essas interferências e à releitura feita por ele mesmo. A base de sustentação
do livro, porém, continuou a mesma: uma cidade em guerra e um narrador
solitário enclausurado dentro de casa, ruminando imagens e passagens de uma
história de amor. Não existe um enredo preciso: cabe ao leitor depreender das
cenas uma possível narrativa. O que se sabe é que o protagonista-narrador — “um
sujeito esguio, magro, com fome e sede, barba rala e fedorenta” — teve uma
doença e uma aposentadoria precoce, foi abandonado pela mulher, que lhe deixou
um bilhete enigmático antes de partir, e mantém como único consolo a memória
dos tempos de felicidade vividos com ela.
A ênfase é dada aos aspectos
sensoriais da linguagem, ao encadeamento poético das cenas e ao torvelinho
interno do eu que narra. Presente e passado, dentro e fora, proximidade e
distância se confundem no texto, ao ponto de o narrador dizer: “a cidade também
é dentro de casa”. A isso se soma a presença rarefeita de dados factuais, de
ação narrativa e de elementos que possam garantir um solo, digamos, mais
realista para a história. A realidade é evocada aqui e ali, mas sempre de
maneira turva. Daí o uso frequente, pelo narrador, de termos como “talvez”, “me
parece”, “provavelmente”, “acho”, “creio”, “quem sabe” para falar do que se
passa lá fora. Em suas palavras: “Lá fora é longe, uma distância quase
imperceptível, esta.”
A imprecisão como recurso
narrativo é também um traço constitutivo de “Jogo de varetas”. Os escritos que
compõem o livro são curtos e de formatos variados. As vírgulas, usadas em
profusão, conferem um ritmo peculiar às frases. As histórias também não
apresentam enredo explícito, embora contenham dados referenciais capazes de
nortear, até certo ponto, o leitor. Em “Pressa”, por exemplo, o tema é uma
caixa azul de biscoitos dinamarqueses que chegou pelo correio, sem que fosse
esperada; mas a história que envolve esse objeto e esse acontecimento é
incerta, ficando no plano das suposições. Já em “O feltro verde da mesa de
bilhar”, a descrição do ambiente e dos homens que jogam bilhar ganha vida e
movimento, aproximando-se da narrativa cinematográfica.
Outro detalhe que chama a atenção no
livro é a composição dos personagens. Em geral, não têm nome ou não sabem que
nome têm. Os nomes próprios se explicitam apenas em “O lugar da atenção” e em
“Todos os dias, quando o céu aparece”, cujo narrador-personagem se identifica
como “Oito”. Há alguns personagens bem definidos, como a velha cega da
narrativa “Amém!”, a meu ver, a melhor do livro. No conjunto, como observou
Veronica Stigger na apresentação do volume, os personagens se encontram em
estado de deslocamento e desamparo, “como se ainda não tivessem se encontrado
ou encontrado seu lugar no mundo”. E o mundo, assim como o cenário de “As
mãos”, está num campo de guerra. Daí que a vida, para eles, se defina como um
exercício de sobrevivência e uma experiência feita, sobretudo, de erros. Em
outras palavras, um jogo.
Percebe-se,
pela arquitetura do livro e pelos requintes da linguagem, que Manoel Ricardo de
Lima é, antes de tudo, poeta. Mesmo quando faz um texto todo em diálogos, como
na penúltima parte do volume, não abre mão da poesia. Sua prosa é prosa de
poeta, não de prosador. Por isso os textos causam estranhamento e desafiam o
entendimento do leitor. Cabe a este entrar no jogo e tentar preencher, com a
imaginação, os finais inconclusos das narrativas e estabelecer possíveis nexos
entre elas. O que nem sempre é fácil nestes tempos de culto a uma literatura
que traz tudo pronto, mastigado, para seus leitores.
“As mãos” e “Jogo
de varetas” são livros singulares, que não fazem concessão aos imperativos do
mercado, mas se afirmam como resistência ao que se espera, hoje, de uma novela,
um conto e um poema. Têm, nesse sentido, também uma função política.
*Maria Esther Maciel é escritora e
professora de literatura da UFMG. Publicou, entre outros, “O livro dos nomes”
(Companhia das Letras) e “As ironias da ordem” (Ed. UFMG)
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