quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Resenha, "jogo de varetas" / "as mãos" [O Globo]


Jornal O Globo, caderno Prosa & Verso, em 1 de dezembro de 2012

Escritor lança livros que fazem da imprecisão um recurso narrativo, com a cadência poética das cenas se sobrepondo aos enredos
Por Maria Esther Maciel*  
Manoel Ricardo de Lima sempre foi um escritor avesso aos modelos legitimados de narrativa, poema e ensaio. Transitando livremente em diferentes formas de escrita, publicou livros que se desviam da noção fixa de gênero literário, seja por mesclar registros textuais, seja por criar outra coisa, difícil de definir com precisão. Esse é o caso dos dois volumes que acaba de lançar pela editora 7Letras: “As mãos”, uma novela que também pode ser lida como um conjunto de escritos avulsos, e “Jogo de varetas”, constituído de 23 pequenos textos poético-narrativos, associados pelo autor às hastes coloridas de um jogo de varetas. 

O primeiro livro já tinha sido publicado em 2003 e 2006. Desde a primeira edição, sofreu sucessivas intervenções de artistas visuais e sonoros que releram fragmentos da obra a partir de distintos enfoques criativos. Segundo o autor, que hoje é professor de literatura brasileira da UniRio, o livro acabou por se tornar outro graças a essas interferências e à releitura feita por ele mesmo. A base de sustentação do livro, porém, continuou a mesma: uma cidade em guerra e um narrador solitário enclausurado dentro de casa, ruminando imagens e passagens de uma história de amor. Não existe um enredo preciso: cabe ao leitor depreender das cenas uma possível narrativa. O que se sabe é que o protagonista-narrador — “um sujeito esguio, magro, com fome e sede, barba rala e fedorenta” — teve uma doença e uma aposentadoria precoce, foi abandonado pela mulher, que lhe deixou um bilhete enigmático antes de partir, e mantém como único consolo a memória dos tempos de felicidade vividos com ela. 


A ênfase é dada aos aspectos sensoriais da linguagem, ao encadeamento poético das cenas e ao torvelinho interno do eu que narra. Presente e passado, dentro e fora, proximidade e distância se confundem no texto, ao ponto de o narrador dizer: “a cidade também é dentro de casa”. A isso se soma a presença rarefeita de dados factuais, de ação narrativa e de elementos que possam garantir um solo, digamos, mais realista para a história. A realidade é evocada aqui e ali, mas sempre de maneira turva. Daí o uso frequente, pelo narrador, de termos como “talvez”, “me parece”, “provavelmente”, “acho”, “creio”, “quem sabe” para falar do que se passa lá fora. Em suas palavras: “Lá fora é longe, uma distância quase imperceptível, esta.” 


A imprecisão como recurso narrativo é também um traço constitutivo de “Jogo de varetas”. Os escritos que compõem o livro são curtos e de formatos variados. As vírgulas, usadas em profusão, conferem um ritmo peculiar às frases. As histórias também não apresentam enredo explícito, embora contenham dados referenciais capazes de nortear, até certo ponto, o leitor. Em “Pressa”, por exemplo, o tema é uma caixa azul de biscoitos dinamarqueses que chegou pelo correio, sem que fosse esperada; mas a história que envolve esse objeto e esse acontecimento é incerta, ficando no plano das suposições. Já em “O feltro verde da mesa de bilhar”, a descrição do ambiente e dos homens que jogam bilhar ganha vida e movimento, aproximando-se da narrativa cinematográfica.
Outro detalhe que chama a atenção no livro é a composição dos personagens. Em geral, não têm nome ou não sabem que nome têm. Os nomes próprios se explicitam apenas em “O lugar da atenção” e em “Todos os dias, quando o céu aparece”, cujo narrador-personagem se identifica como “Oito”. Há alguns personagens bem definidos, como a velha cega da narrativa “Amém!”, a meu ver, a melhor do livro. No conjunto, como observou Veronica Stigger na apresentação do volume, os personagens se encontram em estado de deslocamento e desamparo, “como se ainda não tivessem se encontrado ou encontrado seu lugar no mundo”. E o mundo, assim como o cenário de “As mãos”, está num campo de guerra. Daí que a vida, para eles, se defina como um exercício de sobrevivência e uma experiência feita, sobretudo, de erros. Em outras palavras, um jogo. 
Percebe-se, pela arquitetura do livro e pelos requintes da linguagem, que Manoel Ricardo de Lima é, antes de tudo, poeta. Mesmo quando faz um texto todo em diálogos, como na penúltima parte do volume, não abre mão da poesia. Sua prosa é prosa de poeta, não de prosador. Por isso os textos causam estranhamento e desafiam o entendimento do leitor. Cabe a este entrar no jogo e tentar preencher, com a imaginação, os finais inconclusos das narrativas e estabelecer possíveis nexos entre elas. O que nem sempre é fácil nestes tempos de culto a uma literatura que traz tudo pronto, mastigado, para seus leitores. 

“As mãos” e “Jogo de varetas” são livros singulares, que não fazem concessão aos imperativos do mercado, mas se afirmam como resistência ao que se espera, hoje, de uma novela, um conto e um poema. Têm, nesse sentido, também uma função política. 

*Maria Esther Maciel é escritora e professora de literatura da UFMG. Publicou, entre outros, “O livro dos nomes” (Companhia das Letras) e “As ironias da ordem” (Ed. UFMG)

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