Diário Catarinense, 24 de novembro de 2012
Alguns objetos dentro de uma sacola de plástico amarela
por Sérgio Medeiros
Alguns objetos dentro de uma sacola de plástico amarela
por Sérgio Medeiros
Há tempos eu não lia um livro tão interessante quanto “Jogo de Varetas” (7 Letras, RJ), do prosador Manoel Ricardo de Lima, lançado recentemente. Escrevo “prosador” de propósito, pois me parece que esse termo é mais justo do que o termo contista, que também caberia ao autor. O prosador faz experiências com a linguagem, ultrapassando certas categorias como conto, poema etc. O prosador não está limitado ao conto, faz prosas, mas não aspira necessariamente a fazer romance.
Dos “beckettianos” brasileiros que eu conheço, Manoel Ricardo,
como gosto de chamá-lo (o nome duplo ecoa o fato de que, junto com o livro
novo, ele também relança outro trabalho importante, “As mãos”, pela mesma
editora carioca), é seguramente o autor mais bem-sucedido, entre os escritores da
sua geração (quarenta anos de idade). Não imita a linguagem do mestre irlandês,
nem se limita a recriar, em português, aquela atmosfera inerte e esquálida que
geralmente associamos ao autor de “O inominável” e de “Fim de partida”. Manoel
Ricardo tem um universo próprio, brasileiro e (muitas vezes) nordestino, e, no
entanto, todo o tempo dialoga com Beckett, apostando, porém, muito mais na invenção
e exploração de um vocabulário e de uma sintaxe pessoais. Ou seja, não encontro
cacoetes beckettianos em Manoel Ricardo. Por isso pode-se afirmar que esse
autor atingiu o auge da sua forma. É um prosador maduro que forjou seu próprio dialeto,
algo dificílimo de realizar na literatura contemporânea.
Logo que comecei a ler “Jogo de Varetas” e me deparei com uma
infinidade de personagens solitários e decrépitos, a se deslocar por um mundo
inóspito ou, na melhor das hipóteses, desconfortável, quando não violento (a
metáfora da “guerra” percorre esses relatos, que tratam de batalhas mentais e
físicas), pensei não apenas em Beckett, mas também no poeta norte-americano
William Carlos Williams. O recorte preciso (e aparentemente espontâneo) da cena
cotidiana, que encontramos nos poemas desse mestre da objetividade, reaparece
nas cenas sensíveis e dolorosas de Manoel Ricardo, talvez com muito mais
dramaticidade. Afinal, um dos personagens de “Jogo de Varetas” declara,
resumindo a inquietação de todos os outros: “Não sei direito pra onde vou.
Tenho a impressão que vou morrer a qualquer hora.” E, na sequência, volta a
mexer na sua caixa de Pandora: “Volto a pensar nos objetos dentro as sacola de
plástico amarelo, todos muito coloridos. Vermelho com verde, outro azul, outro
com listras verticais.”
Os personagens de Beckett se aferram, como se sabe, a tais objetos
ínfimos e, no caso de “Jogo de Varetas”, também misteriosos. Mas me parece que William
Carlos Williams, no seu famoso poema “To a Poor Old Woman”, “A uma pobre
velha”, em tradução livre, é quem descreveu de modo magistral o universo no
qual, neste novo trabalho, Manoel Ricardo imerge com convicção, sem jamais
ceder ao vulgar e ao suburbano que encontramos em autores brasileiros modernos
e contemporâneos, que também falaram de seres decrépitos, mas sem tanta delicadeza
poética. O poema a que fiz referência diz mais ou menos o seguinte (a tradução
é minha): a pobre senhora “morde uma ameixa na rua, um saco de papel cheio
delas na mão. Agradam-lhe muito. Agradam-lhe muito. Agradam-lhe.” Então,
conclui o poema: “Uma alegria de ameixas maduras parece invadir o ar.”
Na prosa de Manoel Ricardo, porém, falta essa alegria. O “saco de
ameixas” existe, mas o prazer de mordê-las não. Falta em “Jogo de Varetas” o
raro e inegável momento de degustação ou de deleite pleno, como no poema
citado. Assim, lemos num dos textos do livro em questão: “Meto a mão na bolsa
que trouxe a tiracolo, procuro um pacote antigo feito com papel marrom,
enrolado com barbante, frouxo: um maço de fotografias coloridas. Tenho medo de
perder a mão dentro da bolsa.” Ou seja, o instante de regozijo, que existe em
William Carlos Williamns, parece aqui se transformar num momento de receio ou
pânico. A prosa de Manoel Ricardo, com sua típica dramaticidade, começa a
dialogar com Beckett, afastando-se dos versos do poeta. Talvez Beckett tenha
mais humor do que o jovem autor brasileiro. Manoel Ricardo não se distingue, de
fato, pelo humor, sua prosa, que descreve uma “paisagem frágil, desaparecida,
seca”, não permite que os personagens tenham o sossego que desejam, a trégua
que imploram.
Num relato típico, o personagem imobilizado ou prisioneiro diz:
“Tenho um muro pleno, feito por ciclopes.” O que o personagem vê não são certamente
as ameixas saborosas de William Carlos Williams, mas o mundo de hoje, um mundo
quase insuportável e intragável. O personagem vê o terrível olho do ciclope,
que o devassa e que é ao mesmo tempo a sua própria consciência, o seu próprio
monólogo infinito. Também o monólogo, e quase apenas ele, povoa os textos de Beckett,
onde a voz anônima substitui a subjetividade dos romances de antigamente (e
ainda dos romances de hoje).
Professor de Literatura Brasileira na Unirio, Rio de Janeiro e
ex-aluno da UFSC, onde defendeu tese de doutorado há poucos anos, Manoel
Ricardo de Lima, com esse novo livro, se afirma como um dos mais instigantes e
sólidos escritores do país.
*Sérgio Medeiros é ensaísta, tradutor e poeta. Publicou, entre
outros, o livro de poesia “Totens” e, em colaboração com Dirce Waltrick do Amarante, “Cartas a Nora”, de James Joyce.
que crítica bonita. fiquei ainda mais curiosa para ler o livro. lancemos aqui. :) beijos aos queridos.
ResponderExcluirbonito o texto do sérgio! dá conta direitinho dessa escrita do manoel, que é, ao mesmo tempo, um 'soco na boca do estômago' e um afago.
ResponderExcluirbeijo em vocês,
aline