quarta-feira, 28 de novembro de 2012

resenha, "jogo de varetas" [DC]


Diário Catarinense, 24 de novembro de 2012
Alguns objetos dentro de uma sacola de plástico amarela 

por Sérgio Medeiros

Há tempos eu não lia um livro tão interessante quanto “Jogo de Varetas” (7 Letras, RJ), do prosador Manoel Ricardo de Lima, lançado recentemente. Escrevo “prosador” de propósito, pois me parece que esse termo é mais justo do que o termo contista, que também caberia ao autor. O prosador faz experiências com a linguagem, ultrapassando certas categorias como conto, poema etc. O prosador não está limitado ao conto, faz prosas, mas não aspira necessariamente a fazer romance.  
Dos “beckettianos” brasileiros que eu conheço, Manoel Ricardo, como gosto de chamá-lo (o nome duplo ecoa o fato de que, junto com o livro novo, ele também relança outro trabalho importante, “As mãos”, pela mesma editora carioca), é seguramente o autor mais bem-sucedido, entre os escritores da sua geração (quarenta anos de idade). Não imita a linguagem do mestre irlandês, nem se limita a recriar, em português, aquela atmosfera inerte e esquálida que geralmente associamos ao autor de “O inominável” e de “Fim de partida”. Manoel Ricardo tem um universo próprio, brasileiro e (muitas vezes) nordestino, e, no entanto, todo o tempo dialoga com Beckett, apostando, porém, muito mais na invenção e exploração de um vocabulário e de uma sintaxe pessoais. Ou seja, não encontro cacoetes beckettianos em Manoel Ricardo. Por isso pode-se afirmar que esse autor atingiu o auge da sua forma. É um prosador maduro que forjou seu próprio dialeto, algo dificílimo de realizar na literatura contemporânea.
Logo que comecei a ler “Jogo de Varetas” e me deparei com uma infinidade de personagens solitários e decrépitos, a se deslocar por um mundo inóspito ou, na melhor das hipóteses, desconfortável, quando não violento (a metáfora da “guerra” percorre esses relatos, que tratam de batalhas mentais e físicas), pensei não apenas em Beckett, mas também no poeta norte-americano William Carlos Williams. O recorte preciso (e aparentemente espontâneo) da cena cotidiana, que encontramos nos poemas desse mestre da objetividade, reaparece nas cenas sensíveis e dolorosas de Manoel Ricardo, talvez com muito mais dramaticidade. Afinal, um dos personagens de “Jogo de Varetas” declara, resumindo a inquietação de todos os outros: “Não sei direito pra onde vou. Tenho a impressão que vou morrer a qualquer hora.” E, na sequência, volta a mexer na sua caixa de Pandora: “Volto a pensar nos objetos dentro as sacola de plástico amarelo, todos muito coloridos. Vermelho com verde, outro azul, outro com listras verticais.”
Os personagens de Beckett se aferram, como se sabe, a tais objetos ínfimos e, no caso de “Jogo de Varetas”, também misteriosos. Mas me parece que William Carlos Williams, no seu famoso poema “To a Poor Old Woman”, “A uma pobre velha”, em tradução livre, é quem descreveu de modo magistral o universo no qual, neste novo trabalho, Manoel Ricardo imerge com convicção, sem jamais ceder ao vulgar e ao suburbano que encontramos em autores brasileiros modernos e contemporâneos, que também falaram de seres decrépitos, mas sem tanta delicadeza poética. O poema a que fiz referência diz mais ou menos o seguinte (a tradução é minha): a pobre senhora “morde uma ameixa na rua, um saco de papel cheio delas na mão. Agradam-lhe muito. Agradam-lhe muito. Agradam-lhe.” Então, conclui o poema: “Uma alegria de ameixas maduras parece invadir o ar.”
Na prosa de Manoel Ricardo, porém, falta essa alegria. O “saco de ameixas” existe, mas o prazer de mordê-las não. Falta em “Jogo de Varetas” o raro e inegável momento de degustação ou de deleite pleno, como no poema citado. Assim, lemos num dos textos do livro em questão: “Meto a mão na bolsa que trouxe a tiracolo, procuro um pacote antigo feito com papel marrom, enrolado com barbante, frouxo: um maço de fotografias coloridas. Tenho medo de perder a mão dentro da bolsa.” Ou seja, o instante de regozijo, que existe em William Carlos Williamns, parece aqui se transformar num momento de receio ou pânico. A prosa de Manoel Ricardo, com sua típica dramaticidade, começa a dialogar com Beckett, afastando-se dos versos do poeta. Talvez Beckett tenha mais humor do que o jovem autor brasileiro. Manoel Ricardo não se distingue, de fato, pelo humor, sua prosa, que descreve uma “paisagem frágil, desaparecida, seca”, não permite que os personagens tenham o sossego que desejam, a trégua que imploram.
Num relato típico, o personagem imobilizado ou prisioneiro diz: “Tenho um muro pleno, feito por ciclopes.” O que o personagem vê não são certamente as ameixas saborosas de William Carlos Williams, mas o mundo de hoje, um mundo quase insuportável e intragável. O personagem vê o terrível olho do ciclope, que o devassa e que é ao mesmo tempo a sua própria consciência, o seu próprio monólogo infinito. Também o monólogo, e quase apenas ele, povoa os textos de Beckett, onde a voz anônima substitui a subjetividade dos romances de antigamente (e ainda dos romances de hoje).
Professor de Literatura Brasileira na Unirio, Rio de Janeiro e ex-aluno da UFSC, onde defendeu tese de doutorado há poucos anos, Manoel Ricardo de Lima, com esse novo livro, se afirma como um dos mais instigantes e sólidos escritores do país.                 


*Sérgio Medeiros é ensaísta, tradutor e poeta. Publicou, entre outros, o livro de poesia “Totens” e, em colaboração com Dirce Waltrick do Amarante, “Cartas a Nora”, de James Joyce. 

2 comentários:

  1. que crítica bonita. fiquei ainda mais curiosa para ler o livro. lancemos aqui. :) beijos aos queridos.

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  2. bonito o texto do sérgio! dá conta direitinho dessa escrita do manoel, que é, ao mesmo tempo, um 'soco na boca do estômago' e um afago.

    beijo em vocês,
    aline

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