quarta-feira, 2 de maio de 2012

O Senhor Eliot,


O Globo, Prosa & Verso, 30/04/12

As conferências e a imaginação do Senhor Eliot

por Júlia Studart

Gonçalo M. Tavares publicou no Brasil recentemente O Senhor Eliot e as conferências, mais um livro da série “O Bairro”. Este livro é mais uma peça partida de seu modo de operação na construção desse projeto [O Bairro] que vem de uma insistência, um exercício de repetição, quando faz uso recorrente do fragmento – como recurso de elaboração do pensamento de toda sua vasta produção que pode ser lida entre a fabulação e o ensaio, o poema e a filosofia – para imprimir sobre o corpo de seu trabalho, a partir do corpo de alguns escritores e pensadores [os moradores do Bairro], uma teoria do espaço íntimo e, ao mesmo tempo, pensá-los como componentes de uma intensidade secreta relacional. Para o pensador alemão Peter Sloterdijk, por exemplo, a grande recusa da modernidade é a recusa do espaço íntimo. E é nessa recusa, me parece, que “O Bairro”, como o desenho de uma conurbação moderna, aparece como um deslocamento da biblioteca íntima de um escritor-leitor para a construção de um espaço íntimo que pode ser gerador de um projeto para a utopia e, ao mesmo tempo, numa tensão, detonador de uma distopia.
Se observarmos ao redor e diante de todo o conjunto de séries do trabalho de Gonçalo M. Tavares, é seu livro Biblioteca [que aparece quase junto ao primeiro livro da série “O Bairro”], publicado em 2004, que abre um empenho em direção ao corpo político de escritores e de seus trabalhos a partir de verbetes de imaginação. A tarefa é impor o homem com sua humanidade como um centro de reflexão, como um centro da história nos tempos de agora. O que se lê em Biblioteca é, primeiro, um conhecimento por montagem entre a organização alfabética de verbetes e, depois, noutra modulação, como conceito, a organização de uma série de textos a partir dos nomes e do trabalho dos escolhidos para montar um livro de areia entre filósofos, artistas, poetas etc. Esta ideia, que se desdobra até “O Bairro”, aparece pois de outra forma, e passa a ser – de certa maneira – a constituição de uma constelação pormenorizada de escritores, artistas e pensadores [principalmente da modernidade] que são colocados num mesmo espaço contíguo de uma esfera – uma espécie de bolha – agora como moradores.
Tanto que Gonçalo M. Tavares já afirmou que “O Bairro” não foi pensado antes do primeiro livro da série, O Senhor Valéry, que era apenas um livro isolado, mas articulou-se num tempo depois quando escreveu e publicou O Senhor Henri [2003], O Senhor Brecht [2004], O Senhor Juarroz [2004] O Senhor Kraus [2005], O Senhor Calvino [2005], O Senhor Walser [2006], O Senhor Breton [2008], O Senhor Swedenborg [2009] e, agora, O Senhor Eliot [2010]. O projeto, que é uma espécie de demarcação futura do espaço contingente, conta com a prospecção de cerca de 40 senhores. Assim, ele começa a desenhar a cartografia do seu bairro como este empenho para uma utopia, seguindo uma estrutura que contém algumas formas de trabalho que retira de cada um desses senhores para rearmar sua própria escrita por dentro da história e da literatura, e a partir de uma possível formação de duplas complementares de composição. O que está em jogo é a sua biblioteca de interesses, e é a partir dela que procura compor o que podemos chamar vagarosamente de uma outra história da literatura com vários desdobramentos impensados.
Por isso é possível dizer que este projeto de escrita é desenhado a partir da ideia do complementador, aquele que pode formar duplas e duos, e que se estabelece como uma convicção exatamente em suas possibilidades abertas de convivência e de estrutura relacional, como – por exemplo – quando reelabora o princípio da ideia de vizinhança no seu desenho mais simples: o de uma cartografia poético-urbana que interfere no mapa técnico. E assim, se todo o gesto de começo e escrita da série “O Bairro” gira em torno de relações espaciais próprias, porém modeladamente urbanas, é prudente apontar o quanto a série é também uma crítica da modernidade monstruosa.
O livro O Senhor Eliot e as conferências, que foi publicado em Portugal em 2010, é composto por uma série de sete conferências sobre poesia, ou seja, sete ensaios sobre poesia e poetas. Mais especificamente, sobre um verso retirado de algum poema de alguns poetas absolutamente díspares: Cecília Meireles, René Char, Sylvia Plath, Marin Sorescu, W.H. Auden, Joseph Brodsky e Paul Celan. E tudo começa num livro anterior, O Senhor Swedenborg e as investigações geométricas, de 2009. No começo deste livro o senhor Swedenborg assiste a uma conferência do senhor Eliot, exatamente sobre um verso de Sylvia Plath que diz: “Não sou ninguém; não tenho nada a ver com explosões”. O senhor Swedenborg se distrai logo aí, e retoma a sua obsessão em torno da geometria como um problema para a escrita e para o escritor. Só ao final da conferência, em meio aos aplausos, o senhor Swedenborg volta a prestar atenção na conferência, que vai se encerrando. Ora, mas o livro O Senhor Swedenborg recupera um livro que foi publicado em 2005, intitulado apenas de Investigações geométricas, agora acrescido de um prefácio e um posfácio que compõem a figura de Swedenborg como um pensador interessado em filosofia, teologia, anatomia, geologia, astronomia, cosmologia, mecânica e hidráulica e que chegou a projetar máquinas de transporte, içamento e, principalmente, máquinas voadoras. O projeto de escrita de Gonçalo M. Tavares passa por um desdobramento desses escritores-filósofos interessados num conhecimento ampliado e variando de um livro a outro sem perder de vista a ideia convulsa de série. 
Por isso o personagem que vem do autor de Quatro Quartetos, do A Canção de amor de J. Alfred Prufrock e de A Terrra Desolada, este senhor Eliot, é um poeta-crítico assaltado pela sua própria forma de pensar e de ler poemas, muito mais do que por sua própria poesia. Muito por isso, as conferências giram sobre um verso de um desses poetas escolhidos para elas repetindo, como indicação, o gesto do próprio Gonçalo M. Tavares ao girar também sobre o modo de operação crítica de T.S. Eliot. Como, por exemplo, o que escreve a partir do verso de René Char – “Estais dispensados, meus aliados, meus violentos, meus indícios” – é uma afirmação de uma arqueologia de escrita que começa tentando tocar, como propôs Nietzsche, a recuperação de seus complementadores, os seus “impossíveis”. O senhor Eliot diz a partir do verso de Char: “Mas o que é um corpo sem os seus aliados orgânicos ou exteriores, sem os seus aliados violentos, sem os indícios que se constituem como as suas mais fortes e únicas promessas? Precisamos de ter no corpo os violentos, eis uma verdade. Uma força excessiva que guardamos no quarto dos fundos, mas que sabemos existir. E se necessário: chamamo-la. [...] O  verso correcto, melhorado, seria então: ‘Não estais dispensados, meus aliados, meus violentos, meus indícios.’ Veja-se pois a importância de um pequeno não.”  
É a sugestão sempre propositiva do desvio feita por um narrador que se provoca nessa escrita, que podemos voltar ao que Walter Benjamin expressa no seu conhecido ensaio O narrador”: que é quando lemos o homem inserido numa paisagem que mudava a cada instante e que em nada continuava como antes, ou seja, inserido completamente nos artifícios da modernidade e com as ações da experiência em baixa, que temos “além das nuvens, e debaixo delas, num campo magnético de correntes devastadoras e explosões, o pequenino e quebradiço corpo humano”. E é este pequeno e quebrado, exaurido e extraviado corpo humano que vem com muita força na escrita insolente e sutil de Gonçalo M. Tavares entre todos estes seus senhores e, ao mesmo tempo, servos, indistintamente. 


Ver http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2012/04/28/resenha-de-senhor-eliot-as-conferencias-de-goncalo-tavares-442373.asp

2 comentários:

  1. Que bonito, Júlia. Cada vez mais melhor estes seus textos. Gosto muito de ler cada um deles. Parabéns pela força de imaginação.

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  2. Acho o que o Gonçalo faz muito bom. E como trabalha esse cara, hein. Não consigo acompanhar tudo. Outro dia fiz uma lista do que falta ler dele, é muito, mas muito mesmo, mais do que já li dele. Ou seja, estou em débito até com você.
    Um beijo, João C.

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