Edições Chão da Feira, Caderno de Leituras n.5
Lisboa/Rio de Janeiro, Abril de 2012
IMAGEM, DERIVA E DANÇA
IMAGEM, DERIVA E DANÇA
por Júlia Studart
1.
Em entrevista concedida a Pedro G. Romero, Georges
Didi-Huberman afirma que um dos conceitos mais importantes para o seu trabalho
é o de sintoma. E deixa muito claro
que com isso não quer dizer que busque o que provoca ou causa o sintoma, o
“sintoma de”. O que procura, na verdade, são os próprios sintomas [porque
sintoma é um conceito semiótico – fala do sentido –, mas é também corporal]. E
isso é precisamente um gesto: um movimento do corpo que se encontra
investido de certa capacidade de significado ou de expressão. É importante
remeter ao sentido da palavra grega “syntoma”,
que tem a ver diratemente com queda, com naufrágio, com derrubada, coincidência
e acontecimento fortuito [ANTELO, 2009, p. 74]. E a imagem,
por sua vez, está numa relação direta com o gesto,
com o corpo, mais ou menos próxima a
essa deliberação, a essa atribuição. Porque, lembra Didi-Huberman, o que interessa é, de fato, o que
acontece entre o mundo dos signos e o mundo do corpo, e que isso é o que seria,
precisamente, uma imagem.
Assim, Didi-Huberman elabora o seu conceito de imagem a
partir da expressão fugaz da imagem
mariposa, algo muito mais perto do corpo e do desejo, uma imagem vivente e
fulgurada:
Se você realmente quiser ver as asas
de uma mariposa,
primeiro você tem que matá-la e logo colocá-la em uma vitrina. Uma vez morta, e só então, você pode contemplá-la
tranquilamente. Mas se você quer conservar a vida, que afinal é o mais
interessante, só verá as asas
fugazmente, em muito pouco tempo, um
abrir e fechar de olhos. Isto é a imagem. A imagem é uma mariposa.
Uma imagem é algo
que vive e que só nos mostra sua
capacidade de verdade em um flash. [DIDI-HUBERMAN, 2007]
Ou
seja, a “capacidade de verdade” só ocorre em momentos muito breves,
brevíssimos. Esta proposição, apontada na entrevista citada,
comparece antes no texto “A imagem mariposa” [2006], quando Didi-Huberman diz acerca
dos enganos do pensamento, que constituem, de certa maneira, a ambivalência da
imagem, da imagem mariposa, em alguns pontos: 1] afirma que é um erro crer que
uma vez que aparece, a coisa está,
permanece, resiste, persiste tal qual no tempo como em nosso espírito, que a
descreve e conhece. Que uma coisa, como a mariposa, por exemplo, aparece senão
para desaparecer num instante seguinte. Ou seja, temos sempre que levar em
conta o ponto de vista temporal de sua fragilidade; 2] Depois, afirma acerca da
permanência no tempo, que o que já não
está permanece, resiste, persiste tanto no tempo como em nossa imaginação,
que sempre rememora. 3] Por fim, diz ainda que toda aparição pode ser vista
como uma dança ou como música, como um ritmo que vive da agitação, da
palpitação e que morre do mesmo modo. O ponto
importante é que, para ele, um conceito de imago
é como se uma aparição visual e, ao
mesmo tempo, uma experiência corporal.
No mesmo texto,
Didi-Huberman faz também algumas breves alusões ao filósofo e historiador
francês Jules Michelet para referendar as suas teses acerca da imagem. Chama a
sua atenção, principalmente, a dedicação e o empenho de Michelet ao observar
detidamente as mariposas, numa espécie de lepidopterologia
depurada, tanto que passa a chamá-las de “imperceptíveis construtoras” de formas. É que Michelet reclamava e exigia uma maior
aproximação a estes insetos, porque se poderia estabelecer a partir deles algum
caráter de renovação do pensamento da arte. É interessante lembrar que
no livro de Roland Barthes dedicado aos procedimentos de Michelet, ele vai constituir
um sintoma para o pensamento de Michelet, como deliberação, o de que este
pensador sofria de terríveis enxaquecas [o que nos leva de volta ao problema do
sintoma tão caro a Didi-Huberman,
tanto quanto ao problema do gesto e do corpo como significado – ou sentido – e
expressão]. Uma passagem do texto de Barthes acerca disso é fundamental; diz
ele:
A doença de Michelet é a enxaqueca, esse
misto de ofuscamento e de náusea. Tudo para ele é enxaqueca: o frio, a
tempestade, a primavera, o vento, a história que ele narra. Esse homem que
deixou uma obra enciclopédica feita de um discurso ininterrupto de 60 volumes,
declara-se a todo momento “ofuscado, sofredor, fraco, vazio”. [BARTHES, 1991,
p. 15]
Para Barthes, Michelet é um
doente da história, ou um doente de história. Tanto que procura esclarecer este
movimento próprio em torno das enxaquecas de Michelet como uma demarcação do percurso
que ele provoca através de suas narrativas e do seu estilo interrompido para
cumprir um sentido de ritualidade. Chama-lhe a atenção o caráter enciclopédico
da obra de Michelet como uma busca desenfreada para a compreensão de todos os
tempos – “da era dos répteis a Waterloo – e também de todas as ordens possíveis
de objetos históricos – da invenção da infantaria à alimentação do bebê inglês”
[BARTHES, 1991, p. 23] e da sua participação
política, e aí tanto faz se com a desmedida de suas enxaquecas ou das suas
anotações. Para Barthes, a história só pode ser – como para Michelet – um
objeto de apropriação quando se constitui como um objeto verdadeiro, provido de
duas extremidades: de um lado, a história como alimento pleno, ovo ou tecido;
de outro lado, quando passa a ser e é a história, uma filosofia da história;
mas, por fim, ainda numa terceira possibilidade, a história consumada,
terminada e realizada por um lado e, ao mesmo tempo, por outro, ambivalente,
devorada, ingerida e pronta a ressuscitar o historiador.
2.
O escritor angolano-português
Gonçalo M. Tavares, por sua vez, provoca esta dimensão da imagem em sua
literatura como um corpo que dança, como um corpo que precisa treinar até ser
FUNDO: “O corpo é estranho e FUNDO / Treinar o corpo
a ser FUNDO. / Ser Profundo nos ENSAIOS e mostrá-lo depois à superfície. / SER
PROFUNDO no dia da EXIBIÇÃO Profunda” [TAVARES, 2001, p. 115]. Para ele, a
literatura comparece como um corpo-dançarino, porque a literatura se enfrenta e
se apruma como uma resistência e como um pensamento para a resistência
no mundo agora, ou seja, quando todo este seu gesto pode ser lido no movimento
de mariposear. A partir daí é
possível perceber a tentativa da mobilidade de
escrita de Gonçalo M. Tavares, a escrita como um corpo que se move, quando ao
mesmo tempo em que procura se desvincular de uma linguagem apenas literária e
se aproximar da filosofia, procura também se desvincular da filosofia e aproximar
a palavra da literatura; por isso, sempre, a escrita como um corpo que dança
entre a ficção e a demonstração, o delírio e a lógica, a abertura do
sentido e a sua validação etc. O que é possível ler no fragmento abaixo ao
armar o problema entre o livro de filosofia e o livro de poemas como máquinas
diferentes e, ao mesmo tempo, indistintas:
[...]
Quero comprar uma
máquina que pense por mim.
Tenho o livro de um
filósofo.
Tenho 2 livros de um
filósofo.
Um livro é uma
máquina que pensa por mim
e é uma máquina
barata.
Mas eu não quero que
pensem por mim sempre
da mesma maneira.
O mesmo livro pensa
sempre da mesma maneira.
Se eu fechar o livro,
calo-me, e as pedras pesam-me
mais no crânio.
Se eu abrir o livro
começo a falar, mas digo sempre
a mesma coisa.
Alguém me disse que
um livro de poesia é diferente.
É uma máquina muito
mais rápida.
A cada vez que passa,
passa de outra maneira.
[...]
[TAVARES, 2005, p.
7-8]
Assim, Gonçalo M.
Tavares elabora o que podemos chamar, com Barthes, de seu grau zero. Uma escrita que vem como um
corpo que constantemente hesita entre um termo e outro, neste jogo nada claro
entre polaridades – nem um nem outro, mas também um e outro ao mesmo tempo, um ne-uter –, na sua abertura ou extinção do sentido, na dissolução do conflito gerador de
sentido que move o paradigma da imagem, a partir da figuração de uma imagem que
dança ou de uma imagem da dança: constituir as filigranas do mariposeio, uma imagem mariposa, numa
escrita que pode dançar ou ao menos perguntar a si própria se é capaz de
dançar.
Bibliografia citada:
ANTELO,
Raúl. Acaso, acidente In: LIMA, Manoel Ricardo de. Quando todos os acidentes acontecem. Rio de Janeiro, 7Letras,
2009.
BARTHES,
Roland. Michelet. Trad. Paulo Neves. São Paulo, Cia
das Letras, 1991.
______. O grau zero da escrita. Trad. Mário
Laranjeira. São Paulo, Martins Fontes, 2004.
DIDI-HUBERMAN, Georges. La Imagen Mariposa.
Trad. Juan José Lahuerta.
Barcelona: Mudito & Co., 2007.
______ . Un conocimiento por el montaje. Edições
Minerva. Entrevista concedida a Pedro G. Romero, 2007. Disponível em:
TAVARES,
Gonçalo M. Livro da dança. Lisboa:
Assírio & Alvim, 2001.
______. O Homem ou é Tonto ou é Mulher. Rio de
Janeiro: Casa da Palavra, 2005.
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