segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

O Sr Henri, outra vez!,


por Maria Carolina Fenati
Lisboa, Dezembro de 2011
Edições Chão da Feira, Cadernos de Leitura n.1

O Sr. Henri, outra vez!

 Em 1936, no 14o. Congresso Internacional dos PEN Clubes, ocorrido em Buenos Aires, Henri Michaux proferiu a conferência A verdadeira poesia se faz contra a poesia. Como escreveu Rui Caeiro, tradutor e comentador desse texto, a maioria das intervenções nesse congresso se centraram na defesa de uma função social dos escritores, motivadas talvez pelo cenário desastroso no qual a Europa se perdia – não custa lembrar que em 1936 teve início a guerra civil espanhola e nesse período já se anunciavam, no centro europeu, as catástrofes que eclodiriam na segunda guerra mundial. O discurso de Henri Michaux, entretanto, nega que caberia ao poeta as tarefas de “debruçar-se sobre os problemas sociais” e “meditar nas repercussões da sua palavra”. Essa conferência de Michaux ecoa, mais tarde, na palestra de Witold Gombrowicz, intitulada Contra a poesia, pronunciada em 1957, também em Buenos Aires, que, dizem, de tão polêmica, fez com que o autor tivesse que sair pela janela da galeria de arte, a fim de escapar à raiva de seus ouvintes. 
O texto de Michaux refuta as recomendações que nessa ocasião eram feitas aos poetas, começando por dizer que o poeta não é aquele que se dedica a elaborar com rigor e atenção um produto acabado com a finalidade de colaborar no maior bem-estar de todos (a sua frase é clara: “O poeta não é uma excelente pessoa que prepara a seu grado cozinhados perfeitos para o género humano.”). E ainda, mesmo que fosse esse o intuito ou desejo daquele que escreve poesia, não há qualquer garantia de que um tema relevante do ponto de vista social encontre eco na construção poética, ou possa ser por meio dela transmitido. Não há modo seguro de fazer de um tema social uma imagem poética, como, aliás, não há garantias de provocar o nascimento poético de qualquer tema que seja anterior ao texto ou de transpor para a noite da escrita qualquer assunto proveniente do dia claro das certezas. Isso porque o poeta não faz passar para a poesia aquilo que quer: escrever não é uma questão de vontade, nem de boa vontade. 
Mas isso não quer dizer que a poesia nada tem a ver com a existência comum. Como escreve Michaux, a poesia é “social, mas de uma forma mais complexa e indireta do que se diz”. E que forma seria essa? O poeta descobre uma janela para abrir, escreve Michaux. O seu gesto é o de romper com a inércia – a sua, a da época – e escavar um novo começo, uma ruptura com o entorpecimento dos reacionários. E isso já não tem a ver com qualquer moral, porque não se sabe bem o que começa: “Por isso, em vez de os comparar [os poetas] a pregadores espalhando a boa ou má nova, há que compará-los ao primeiro homem que inventou o fogo. Foi um bem, foi um mal? Não sei. Foi um novo começo para a humanidade”. Inventor de começos, o poeta tem esperança na possibilidade do estremecimento, naquilo que pode fazer respirar aquele que asfixiava. A partilha da poesia leva-a a mostrar sua dupla tendência: provocar o fogo, o impulso novo, e, no mesmo golpe, libertar o homem de uma atmosfera gasta, envelhecida, viciada. Esse trabalho é, propriamente, infinito. A inércia pode se instituir mesmo na poesia e é por isso que, quando a poesia de uma época cristaliza-se, parece ela própria asfixiar-se, é preciso, então, fazer a verdadeira poesia contra a poesia, fazer as palavras moverem-se rompendo com o passado enquanto norma e com o presente enquanto abrigo e, buscando a força do inatual, destinar a poesia ao futuro, oferecendo-a ao devir incerto das leituras. 

O devir bêbado de um pensador

Henri Michaux pintou, desenhou, escreveu durante toda a vida e deixou publicados mais de meia centena de livros. Muitos foram os destinos que seus textos tiveram – ao acaso, lembro que alguns de seus livros foram traduzidos por Natália Correia e Luiza Neto Jorge, os seus poemas foram mudados para o português por Herberto Helder, e que Jorge Luis Borges diz que Michaux nos deixa sem entender bem se o próprio universo pertence ao gênero real ou ao gênero fantástico. Talvez a mais recente passagem desses textos pela literatura portuguesa seja uma espécie de retrato incerto, feito por Gonçalo M. Tavares. O senhor Henri (2003) não é uma reconstituição ou apresentação de Michaux, mas uma espécie de delírio de leitura, um recomeço para o que já foi escrito.
No texto de Gonçalo M. Tavares, o Sr. Henri está sempre a entornar copos de absinto enquanto pronuncia seus improváveis conhecimentos enciclopédicos, envolvendo-os numa lógica desequilibrada que faz nascer o devir bêbado de um pensador. É assim que somos colocados diante de problemas insolúveis, somos confrontados com a história do pensamento e das invenções humanas, da natureza e da infância, e lemos o Sr. Henri a escapar sempre de ter que decidir entre as supostas polaridades do raciocínio para equilibrar-se fragilmente entre ambivalências. Esse filósofo de saúde frágil dá saltos no pensamento, faz do absinto um líquido mágico que lhe retira o freio bem comportado da coerência, usa a dedução para afirmar a experiência do impossível, fica fascinado por formigas e é capaz de partir de uma caixa para pensar o infinito.
Júlia Studart escreve que esse desenho às avessas de Michaux é animado por duas forças sugeridas por Jorge Luis Borges em “Pierre Menard, autor do Quixote”. A primeira é a “atribuição errônea”, mecanismo que faz com que Michaux possa ser escrito por um outro, seu leitor, e seja, assim, lançado num sem fim de “outridades”, no qual a memória de um é formada pela contra-assinatura de um outro.  Por isso, se encontramos ecos da poesia de Michaux no texto de Gonçalo, isso não servirá nunca como verificação de qualquer índice de veracidade ou verossimilhança, mas indicará apenas que partir é o único modo de ser dos textos, que ler algumas páginas e com elas escrever é desde sempre desviar, diferenciar, ou que fazer o trânsito entre ler e escrever é lançar o já sabido no devir do desconhecido. E ainda, com Júlia Studart e a partir de Borges, a segunda força de composição deste texto é um “anacronismo deliberado”, aquele que faz com que o Sr. Henri povoe, com outros nomes, um espaço composto por camadas de tempos e lugares geográficos muito distantes. É que esse texto está incluído na série O Bairro, projeto de Gonçalo M. Tavares que propõe a formação de uma constelação, um espaço de figuração da vizinhança, como se a biblioteca fosse também uma paisagem na qual os nomes, e os textos que para eles concorrem, deslizassem pelo movimento ininterrupto do recomeço. Por ela espalhados – no bar ou nas suas casas – estão também o Sr. Valéry, o Sr. Proust, o Sr. Brecht, o Sr. Melville, o Sr. Eliot, a Sra. Woolf,  o Sr. Foucault, entre tantos outros.

Pela Boca para os ouvidos

O Senhor Henri – esse recomeço para Henri Michaux – ganhou ainda uma nova forma. A editora Boca – Palavras que alimentam produziu, em parceria com o Teatro Municipal da Guarda, a peça radiofônica O senhor Henri, a partir do texto de Gonçalo M. Tavares. A peça, que foi difundida em 10 de Setembro de 2010 pela Antena 2 e pela Rádio Altitude, foi agora publicada num pequeno volume ilustrado por Luís Henriques, acrescido de alguns prolegômenos críticos e com um cd acoplado, no qual se escuta uma leitura encantada de O senhor Henri. O texto, lido integralmente em quase uma hora, ganhou outros ruídos e silêncios, metamorfoseado pela voz que o entoa. À leitura das palavras são acrescidos outros sons, os títulos são suprimidos, há intervalos e ecos.
Desta vez, o Sr. Henri convida a escutar, isto é, a dispor-se a repetir um gesto que pouco espaço tem na barulhenta vida de todo dia. Isso tem uma dupla implicação. Por um lado, o texto lido convida a abandonar os olhos – ou o fascínio das imagens – e nos tornar cegos para imaginar, ou, ainda, convida a nos libertarmos das imagens para que outras possam nascer (trata-se, novamente, de recomeço). E por outro lado, implica ainda abrir os ouvidos (e fechar a boca), ficar em silêncio para ouvir a voz do outro. Ricardo Piglia lembra que os músicos contemporâneos comprovam que a cultura de massa não é uma cultura da imagem, mas do ruído – há uma profusão de sons inarticulados que misturam alaridos políticos, sirenes policiais, vozes televisivas e que formam uma espécie de inferno sonoro do qual mesmo Ulisses teria dificuldades em escapar. A peça radiofônica Sr. Henri é talvez uma interrupção nesse matagal de ruídos. Isso porque a leitura cantada não é da ordem dos sons que escondem o silêncio e exigem a nossa desatenção para medir um tempo vazio e que passa rápido. Se é verdade o que nos diz o Sr. Henri, “nos dias que correm aprende-se por todos os lados do corpo”, escutar o texto é aprender pelos ouvidos acolher o som de um outro que nos toma repentinamente como seu destinatário. O som do Sr. Henri a pedir copos de absinto enquanto pronuncia seus pensamentos num bar torna-se uma espécie de força anárquica, um barulho desestabilizador, porque nos priva de alguns dos nossos vícios – a tentação do discurso, a sedução da imagem, a anestesia dos ouvidos. É para toda uma reconfiguração dos sentidos que a peça radiofônica nos convida: a palavra cantada (encantada) faz dançar o corpo sem órgãos de quem escuta.

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