domingo, 15 de janeiro de 2012

Nuno Ramos no O Globo,

Jornal O Globo, RJ, 14 de janeiro de 2012 [Prosa & Verso]
Máquina do Mundo Cão
por Júlia Studart

Em seu primeiro livro, Cujo, o artista visual e escritor Nuno Ramos escreve: “Não devo completar tudo. Estar em dia consigo é uma forma de avareza. Preciso encontrar a fração correta de fracasso.” Este trecho parece indicar o seu projeto de escrita que, em nenhum momento, se distancia de seu projeto como artista visual. Não só porque o seu procedimento gira em torno de questões que se cruzam entre um uso da palavra e a constituição do objeto como interdição, mas também porque trata da interferência na arquitetura de galerias ou instituições públicas e, principalmente, no livro. A “fração de fracasso” tem a ver quase que diretamente tanto com a sua postura como artista quanto com o que ele chama de “pedaços do mundo”, trabalhar no limite político do incompleto e do inacabado; e, aí, não custa lembrar o trabalho de Nuno Ramos na última Bienal de São Paulo, em 2010, intitulado Bandeira Branca – “três enormes esculturas de areia preta pilada, foscas e frágeis, a partir de cujo topo, feito de mármore, três caixas de som emitem, em intervalos discrepantes, as canções "Bandeira Branca" (de Max Nunes e Laércio Alves, interpretada por Arnaldo Antunes), "Boi da Cara Preta" (do folclore, por Dona Inah) e "Carcará" (de João do Vale e José Candido, por Mariana Aydar). Três urubus vivem na instalação durante toda a duração do trabalho” – e as frágeis discussões de recepção da crítica e do público que só demonstram a força política do seu trabalho ao apontar o dedo para o furo de várias imposições do circuito da arte.
Os livros de Nuno Ramos, desde Cujo, depois O pão do corvo e Ó, partem de uma idéia da anotação (e também, nos títulos, de uma escavação ao diabo) e dos usos da palavra como deliberação proibida em torno da linguagem como um corpo ou do corpo como possibilidade mais tensa de linguagem: “arrancar a pele das coisas” e “cansei de arrancar a pele das coisas”. A anotação, como método investigativo, já está no encorpado Ensaio Geral e se desdobra outra vez até o penúltimo livro, O Mau Vidraceiro, e resvala em apontamentos de narrativa seriada, como no caso do Ó, onde isso é mais evidente desde os títulos das narrativas, como em alguns exemplos: Manchas na pele, linguagem; Epifania, provas, erotismo, corpo-sim, corpo-não ou Recobrimento, lama-mãe, urgência e repetição, cachorros sonham? E esta última narrativa pode servir como uma espécie de prefácio a seu mais recente e arriscado projeto, o livro Junco, composto de uma série fragmentada de linhas que se organizam montando poemas numerados que, por sua vez, parecem formar um poema longo.
Junco é um verbete anfíbio e díspar, pode ser uma embarcação chinesa e também uma planta de folhas quase soltas com as quais se pode produzir um crivo, este espaço informal, trançado, aberto, contingente. Assim, à deriva e armando alguns entrelaçamentos do acaso, o livro se compõe a partir de imagens de corpos de cães mortos à beira da estrada que, ao mesmo tempo, engendram-se com imagens de troncos soltos e abandonados na praia. São fotografias espalhadas por todo o livro que perseguem os poemas e que, num movimento às avessas, são perseguidas pelos poemas com o cuidado extremo de que não se tornem legenda uns para os outros. Numa pequena nota ao final do livro, Nuno Ramos diz que as fotografias foramfeitas enquanto escrevia os poemas e que sempre os imaginou juntos. O impasse se dá aí, porque as imagens e os poemas parecem recuperar, em vários momentos e na pergunta definidora, a tal narrativa de Ó: “Mas faz parte da indiferença meio humilde, meio vagabunda dos cachorros deixar-se atropelar sem sequer amassar a lataria, sem ameaçar nossa integridade física nem causar prejuízo a quem os assassina.” e “Cachorros sonham?
Os poemas de Junco, seguindo a perspectiva desse impasse, podem ser lidos numa repetição do que disse Mário Faustino acerca do poema longo de Jorge de Lima - "Trata-se de uma longa série de poemas de todas as influências, embaraçados caminhos cruzados onde mal importa ao autor a construção da unidade poema, onde pouco se lhe dá emitir uma linguagem poética." -, como também em torno da ideia de conhecimento por aproximação e desvendamento do objeto - caso, por exemplo, da poesia de João Cabral de Melo Neto, numa referência cara a Nuno Ramos - ou por montagem, para compor outra máquina do mundo, que desemboca na máquina construída e fincada pela poesia moderna, aí de Dante a Drummond etc, para ficarmos com um lastro esticadinho. No poema 27, Nuno Ramos escreve: "Se aumento / o número de palavras / o mundo, meu mundo, este mundo / que me abraça e que respiro / este conjunto de bolhas e besouros / estoura. // Notícia / poema, samba / coração cenário / grafando num tronco: / a cusparada / da chuva sabe mais."
O impasse entre o vivente e o mundo ambiente está posto, ou seja, entre o homem, o animal e a deriva de um pedaço de mundo abandonado - o tronco de árvore - imprime a força política desse livro de Nuno Ramos, não só porque escolhe a tarefa mais desajustada e às avessas no mundo agora para a linguagem, que talvez seja a do poema, tão sem lugar; mas também porque sugere repensarmos a esfera em rodopio que separou dentro do homem o homem do não-homem e o animal do humano. Flora Sussekind, na orelha do livro, chama atenção para o que se pode chamar de "máquina do mundo cão" nesses poemas, uma espécie de corte por dentro que nos leva a ficar mais perto, por exemplo, de todo o procedimento de Nuno Ramos. Tanto que, por exemplo, sua exposição que viajou o país em 2009/2010 se intitula Só Lâmina, título retirado do poema de João Cabral Uma faca só lâmina, poema que arma todo o começo de uma estocada interior: "qual uma faca íntima / ou faca de uso interno, / habitando num corpo / como o próprio esqueleto // de um homem que o tivesse, / e sempre, doloroso / de homem que se ferisse / contra seus próprios ossos."
E assim, podemos entender o quanto do trabalho de Nuno Ramos está vinculado a essa questão convicta  de uma origem do mundo e da vida sem explicação, como diz no meio do poema de número 43: "A carne / meiga, a grande boceta / a palavra de manteiga // o dado transparente / suspenso, ainda em movimento / sem resultado ou sentença // olha / repara / ausculta // essa riqueza sobrante a toda pérola / essa ciência sublime e formidável / mas hermética // essa total explicação da vida / - tudo se perdeu, bateu / na trave.

Um comentário:

  1. Gostei muito deste seu texto. Já havia gostado muito do anterior, sobre os livros da Llansol, mas este está irreparável. Seja bem vinda, de fato, ao RJ. Um abraço.

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