terça-feira, 22 de setembro de 2009

uma conversa: poesia,

por Carlos Augusto Lima
(Coluna no Diário do Nordeste, Caderno 3, 18.09.09)
ver também: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=671882

Entrevista com Júlia Studart

Escritor precisa ter obra? Precisa ter livro, livro desses grossos, de se manter em pé, de ter volume e aparência de força? E quando um bom poeta se anuncia com vagar, ocupando espaços pequenos, publicando discretamente, aqui e ali, o que acontece? Penso que essa forma de ser (poeta) e discreto, a melhor. Pois tem um tempo trabalhado, chegando aos poucos, com arrumação de idéias, de experiências e discreta naturalidade. É pensando nisso que convido para esta conversa, sobre poesia, que já está no sexto número, como um projeto de mapear um bom pensamento novo nesta cidade, Júlia Studart, que nasceu em Fortaleza, 1979, mas já vê a cidade com a distância, necessária, quase abandono e teimosia de não estar. Júlia é autora de "Wittgenstein e Will Eisner" (Lumme Editor) e de "Livro, Segredo e Infâmia" (Editora da Casa). Publicou também "Marcoaurélio!" uma plaqueta com Milena Travassos (Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura). Faz doutorado em Teoria Literária na Universidade Federal de Santa Catarina/CNPq, a partir das linhas narrativas de Gonçalo M. Tavares. Júlia vive em Florianópolis e observa à distância. O que é bom.

1) Por que escrever poesia, essa insistência?
Penso a poesia como uma espécie de provocação, de afronta. E por outro lado, também como um grande mal-entendido. E, acho que você deve lembrar bem, Carlos, que, de alguma forma, tudo isso começou com um convite seu para participar do projeto das plaquetas, quando você ainda estava no Centro Dragão do Mar. Ou seja, igualmente uma espécie de provocação, que me colocou num fogo cruzado com a poesia. Porque até então eu era apenas uma boa leitora de poesia, porém uma leitora muito distraída. Mas foi precisamente assim que apareceu o meu primeiro poema, Marcoaurélio!, que não deixa de ser uma provocação desdobrada, porque ainda tinha ali, do lado, o trabalho interessante da Milena Travassos. E aí, depois, vieram outros convites para escrever e publicar poemas, sempre entre uma provocação imprevista e todos os meus embaraços com essa linha de texto desajustada, abusada, quase uma zombaria. Hoje escrevo exatamente para tentar manter o mal-entendido, para sustentar a provocação, todas elas, e o convite aberto, esticado para o mundo e, principalmente, para perder o prumo. Acho que meu poema é meio desequilibrado, porque não sei direito como ele começa, nem como termina, mas sei bem o que não quero que esteja ali, escrito. E gosto que ele seja assim mesmo. Por isso escrevo tão pouco, tão devagar, aliás, o poema apenas me segue, porque faço tudo muito devagar. A idéia é reunir esta pequena produção num livro, quando conseguir, se conseguir, e óbvio, este primeiro livro vai ter que se chamar mal-entendido. E pode não aparecer nunca, também. Mas vou manter a insistência.

2) Me faça um paralelo entre poesia/mundo. O que é ser poeta na condição de hoje?
O escritor Gonçalo M. Tavares - que pesquiso no meu doutorado em literatura, aqui em Florianópolis/SC -, diz em um pequeno verbete intitulado Clarice Lispector, que está no seu livro Biblioteca, ainda inédito no Brasil, que: Uma barata pode ser mais importante que um imperador. Se os teus olhos olharem mais tempo para uma barata do que para um imperador, a barata torna-se mais importante que o imperador. E continua: O que é um revolucionário, pergunta-me a minha filha de três anos, e eu respondo: é quem olha mais tempo para uma barata que para um imperador. E o que é um imperador, pergunta-me a minha filha. É aquele que não deixa que se olhe demasiado tempo para a barata - respondi. Acho que o poeta é este revolucionário impreciso, o que procura manter um convite aberto para esta pequena "revolução", que passa por um desvio de olhar, uma saída do olhar médio e da linha central da história, para provocar uma deformação, um assombramento, uma perturbação, que pode ser figurada nesta imagem em ato, tão simples e banal: olhar mais tempo para uma barata que para o imperador. Ou seja, provocar um desequilíbrio na história, no monumento; esquecer-se do imperador, quem é o imperador, se há um imperador. O poeta pode até não existir, não tem precisão de existência, mas não sei o quanto o mundo pode ficar mais estranho de tão igualzinho sem esta figura desimportante.

3) Simples: o que é escrever poesia em Fortaleza. Que tipo de reflexões pode apontar a partir desse dado?
Bem, estou fora de Fortaleza há quase seis anos. Tanto que a cidade hoje me parece muito mais apenas um nome bonito, uma falta, um sei lá bem o quê. E escrevo de um outro lugar, escrevo meio sem cartografia; mas se posso pensar em uma, escrevo a partir de uma ilha, o que parece mais estranho ainda, que pode até trazer também uma mesma linha de mar, mas que não tem linha nenhuma, nenhuma cartografia. Muitas vezes acho que escrevo do meu corpo, da minha casa, do que vi passar ou do que queria muito ver passar diante do meu olho, como uma barata. O fato é que Fortaleza está muito pouco em meu trabalho, quase nada. Acho que devorei Fortaleza há muito tempo, numa espécie de ritual antropofágico, e que hoje ela não me visita mais, ou visita como um devorador. Perdemos as marcas, as duas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário