Invenções do mundo
por Manoel
Ricardo de Lima*
Em Cobra Norato, Raul Bopp escreve: “Agora sim / me enfio nessa pele
de seda elástica / e saio a correr mundo”. Num outro poema, Floresta, num verso solto, escreve: “A
floresta não gosta de ser interrogada”. Mas aí mora o apontamento convulso de
Bopp: uma tarefa da arte, desde a modernidade, e agora mais do que nunca, seria
correr mundo através da profundidade animal da pele para interrogar a floresta e
tentar tocar esse rodopio técnico e estético da vida diante do horror entre o
dinheiro e a guerra. E, se estamos numa luta das imagens, é possível pensar numa
literatura mais potente que se refaça na história, com a história, no tanto que esta é constituída e carregada de
equívocos e, mais precisamente, de nonsense.
O que pode quebrar um pouco com esse último estado da crítica literária, a
publicidade, que tem seu maior exemplo nessa leva de “articulistas” contratados
por editoras para “resenharem” sobre os livros que elas mesmas editam etc. Mas,
no meio disso tudo, com alguma dignidade, a literatura ainda pode ser aquilo
que, de certo modo, Joaquim Cardozo defendia: algo mais perto de uma forma-formante e da assombração.
Assim, um encontro entre
um Raul Bopp destemido, um provável Oswald de Andrade, um Opalka possivelmente
Roman e alguns elementos soltos – postais, reclames, fotografias, anotações, humor,
um narrador imprevisto e sem propósito que esquece muitas vezes de si e
mistura-se num outro, um Chivito uruguaio que pretende construir um Museu do Homem em Trânsito, um alemão
amigo de nome Hans, algumas cartas, uma doença, um homem que morre, uma viagem
de trem, uma viagem de navio, uma Amazônia ambivalente porque contrita e
expandida, um poema-projeto achado a esmo, o mar, o deserto etc – se faz
possível exatamente a partir do DIZER [quando dizer é fazer] de quem torce o
empenho e o nariz, é claro, para armar uma acrobacia numa montagem deliberada em
direção ao desconhecido.
É o caso do livro mais
recente de Veronica Stigger, Opisanie
Swiata, que pode ser lido tanto como um romance quanto como um remendo, um
resto de anotação ou o que sobra do gesto da viagem como literatura. Uma espécie
de tentativa de experimentar a
experiência do mundo composto nessa desopressão causada pela viagem em
torno de uma consciência animal, logo política: “mordo o que posso”, diz
Valéry. Ou uma “máquina infernal”, como sugere Jean Cocteau. Um filho, Natanael,
doente e internado num hospital, escreve ao pai e espera, ansioso e moribundo, que
o pai o visite para conhecê-lo. O pai é Opalka, um polonês circunscrito em meio
a guerra na Europa, a guerra do mundo – e a descoberta aflita de um filho no
Brasil que vive na Amazônia onde esteve no começo do século –, toma um trem,
depois um navio, e nesse traslado do deserto cruza com Bopp, um famigerado
viajante descobridor de aventuras [entre outros personagens], para entender a
própria selvageria. É sintomática a cena em que Bopp lhe estende um caderninho
preto, como presente, depois de Opalka saber sobre a morte do filho, para fazer
anotações, para que “escreva o que passou. Ajuda a superar. E a não esquecer. A
gente escreve para não esquecer. Ou para fingir que esqueceu.” e “Ou para
inventar o que esqueceu. Talvez a gente só escreva sobre o que nunca existiu.”
Esse livro de Veronica
tem a ver com a composição de seu trabalho, não apenas desde os primeiros
livros – ou do mais recente apenas publicado na Argentina, Sur –, mas também com uma tarefa crítica que atravessa alguns de
seus interesses, como por exemplo Flávio de Carvalho [que procura compor uma
deformação entre o que pode ser a imagem e a memória do corpo numa
afrontalidade com o intocável e com o não-acabado, daí A origem animal de Deus, por exemplo] e Maria Martins,
particularmente, como ela mesma ressalta, a série Amazônia [Veronica fez a curadoria da exposição de MM, no MAM-SP, em
cartaz entre julho e setembro deste ano: ‘Maria
Martins: Metamorfoses’]. Depois, ainda, seus livros traçam uma linha
modulada e pontiaguda do que vem de alguns escritores que estão entre os mais imaginativos
e inventivos no Brasil.
Penso, como exemplos, além
das narrativas de viagem próprias dos anos 1920, como bem aponta Flora Sussekind
na apresentação do livro, em alguns outros livros singulares: como Mar Paraguayo ou Meu tio Roseno, a cavalo, de
Wilson Bueno; os livros-montagem do carrasco-neutro Valêncio Xavier; José
Agrippino de Paula com seu PanAmérica;
Paulo Leminski com o retalhamento-intervenção que faz do autorretrato na série biobliográfica que compôs por todo o seu
trabalho, de Propp a Descartes, de Trótski a Narciso ou Jesus etc; a
intolerável e bem humorada viagem interior de Simplício, o personagem de A Luneta Mágica, de Joaquim Manuel de
Macedo, publicado em 1869; ou na impertinência radical entre jogo e colagem da narrativa
de Gerardo Mello Mourão, O Valete de
Espadas, escrita nos anos 1940 quando esteve preso nos porões do Estado
Novo e só publicado no final dos anos 1950. E agora, muito recente, concentrado
entre imaginação e força, como uma fadiga, o romance exausto e encantador de
Jorge Viveiros de Castro, A invenção do
amor, que cumpre um modo de operação pelo lado B dessa afasia de feira e
supermercado festivos que virou moda entre nós.
Por isso que um livro
absolutamente imaginativo e sem classificação precária como o de Veronica é, no
mínimo, um alento, porque provoca encontros imprevistos na recolha de imagens
inventadas como fantasmagorias entre o vazio da história e o que a história não
toca. Voltamos a Raul Bopp. Isto é, ao mesmo tempo, linguagem gritada e consciência
do impenetrável. Logo, nem monumento nem memória. Mas sim, como sugere Silvina
Rodrigues Lopes, quando a literatura é um móbile do “ser-com-os-outros”. Ou seja, quando essas
metamorfoses imprevisíveis podem gerar um pensamento que acontece na
contra-assinatura. Invenção de linguagens, desterritorialização e exigência de hospitalidade
que incitam à apropriação da des-apropriação, propondo uma apropriação antropofágica para a qual a ilegibilidade não se opõe
ao legível, pois, pelo contrário, suporta o infinito da leitura.
*Manoel Ricardo de Lima é poeta, professor da Escola de
Letras e do PPGMS [UNIRIO]. Publicou, entre outros, Entre percurso e vanguarda –
alguma poesia de Paulo Leminski [Annablume, ensaio, 2002] e Jogo
de Varetas [7Letras, narrativas, 2012].
Leia também a versão reduzida no Blog do jornal O Globo:
Caros amigos/amigas,
ResponderExcluirPor favor, gostaria de saber como adquirir o documentário SÓ TENHO UM NORTE, sobre um antigo amigo em comum dos livros (trocamos muitos informações por cartas), o Cleber Teixeira, que nos deixou em junho do ano passado. Agradeço uma informação.
José Salles Neto
Fone: 61 3577-3224
sallesnetoj@gmail.com