Jornal O Globo, 11 de outubro de 2014
Escrita em modo de exílio
Montaigne escreve que sob a influência
da imaginação é possível que o corpo possa se erguer muitas vezes do seu lugar,
engendrando assim, praticamente, um estado de êxtase. Esta imagem aberta é
sempre uma boa deriva de acesso aos livros de Evandro Affonso Ferreira: quando
a imaginação se constitui como uma atividade libertadora para o corpo. É a
presença, num traçado em espiral, do que gira em torno de seu novo livro, “Os
piores dias de minha vida foram todos”, narrado por uma mulher doente que
segura o corpo num exílio forçoso, porém convicto com a imaginação: “Sei que
neste quarto-desamparo procuro levar a imaginação até seu limite — jeito de
driblar entre aspas desintegração contínua delas minhas entranhas” ou “Jeito é
caminhar imaginosa nua pelas ruas desta cidade para fingir que ainda estou
viva. Ilusão, sim, mas benéfica e libertadora”.
Mas esse modo de exílio já está em
todos os livros anteriores, desde “Grogotó!” (2000), quando nos apresenta seu
móbile de desespero a partir das vidas desengraçadas de seus personagens, uma
espécie de estado de tensão recorrente em que lança todos eles. E mais
interessante que, num excesso de imaginação próprio dos infames, quase todos
têm obsessão severa pela coleção despedaçada. Assim, o traço miniaturizado que
entra em cena como ação e gesto nesses personagens, para deslocar seus corpos
inoperantes, é a composição de um catálogo de fracassos, de sobras etc., numa
tentativa de “rastrear as próprias perdas, para escapar às armadilhas da
solidão”. O que também podemos ler nos livros mais recentes, numa operação
entre escavar e recordar: o fortíssimo e denso “Minha mãe se matou sem dizer
adeus” (2010) e o hábil jogo entre o destrambelho e o perecível de “O mendigo
que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam“ (2013).
Em “Os piores dias...”, diante do malogro da vida, entre doença e reclusão, a personagem se ergue quando “pensa ver coisas”, se seguimos Montaigne, isto é, se ergue quando se vê numa deambulação livre da imaginação, mesmo que tenha o corpo imobilizado “horas seguidas sem entrar ninguém para limpar minha boca babujada de saliva; onde fica cada vez mais difícil acomodar-me à condição humana”. Deambulação imaginativa que lembra Manuel Bandeira na construção de sua paisagem fabulosa, promessa para sua adolescência interrompida pela doença, a Pasárgada em que se pode “viver pelo sonho o que a vida madrasta não nos quis dar”.
No livro de
Evandro, a utopia modernista de Bandeira se converte na “metrópole apressurada”
que é a cidade de São Paulo entre suas marcas e monumentos. Ao lado de espaços
assinalados pela mesmice que os apaga, aparece também a cartografia íntima e
desejante da narradora, devassada por “vírus diabólicos, de vitalidade
assombrosa, obstinados em suas maldades, imoladores de vítimas humanas”. É como
se tentasse lançar seu corpo vivo e despido no mundo para correr todos os
riscos de contágio, o que só é possível através da imaginação: “vontade súbita
de sair sem destino [...] vencer distância; simular propósitos; fingir
adventos; ir para desconcertar os planos de volta; não entrar duas vezes na
mesma paisagem; conservar-me afastada deste-daquele quarto fúnebre; viagem
utópica; viajar para correr perigo nas curvas acentuadas; arriscar-me”.
O livro desenha
ainda uma suposta conversa entre essa mulher doente e Antígona, figura da
mitologia grega, que comparece como uma espécie de imagem invertida,
inalcançável, desejada e evocada, a luminosa carpideira dos desafortunados.
Antígona, cuja morte é afirmação de vida e de coragem, opõe-se à mais essa vida
desbotada e desistida, sem feito ou bravura, muito ajustada ao enorme espectro
de personagens desvalidos que, sempre ao som de um jazz, o autor cataloga desde
“Grogotó!” e que, aos poucos, solta no mundo, livro a livro, numa seriação
curiosa de sua única história possível.
* Júlia Studart é
poeta e professora da Escola de Letras daUniRio. Publicou, entre outros, “Vidas
desengraçadas — O gesto de Evandro Affonso Ferreira” (Dobra Editorial, SP]) e
“Nuno Ramos” (Coleção Ciranda da Poesia, EdUerj)
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