domingo, 19 de outubro de 2014

Os piores dias de minha vida foram todos,

Jornal O Globo, 11 de outubro de 2014

Escrita em modo de exílio

Montaigne escreve que sob a influência da imaginação é possível que o corpo possa se erguer muitas vezes do seu lugar, engendrando assim, praticamente, um estado de êxtase. Esta imagem aberta é sempre uma boa deriva de acesso aos livros de Evandro Affonso Ferreira: quando a imaginação se constitui como uma atividade libertadora para o corpo. É a presença, num traçado em espiral, do que gira em torno de seu novo livro, “Os piores dias de minha vida foram todos”, narrado por uma mulher doente que segura o corpo num exílio forçoso, porém convicto com a imaginação: “Sei que neste quarto-desamparo procuro levar a imaginação até seu limite — jeito de driblar entre aspas desintegração contínua delas minhas entranhas” ou “Jeito é caminhar imaginosa nua pelas ruas desta cidade para fingir que ainda estou viva. Ilusão, sim, mas benéfica e libertadora”.

Mas esse modo de exílio já está em todos os livros anteriores, desde “Grogotó!” (2000), quando nos apresenta seu móbile de desespero a partir das vidas desengraçadas de seus personagens, uma espécie de estado de tensão recorrente em que lança todos eles. E mais interessante que, num excesso de imaginação próprio dos infames, quase todos têm obsessão severa pela coleção despedaçada. Assim, o traço miniaturizado que entra em cena como ação e gesto nesses personagens, para deslocar seus corpos inoperantes, é a composição de um catálogo de fracassos, de sobras etc., numa tentativa de “rastrear as próprias perdas, para escapar às armadilhas da solidão”. O que também podemos ler nos livros mais recentes, numa operação entre escavar e recordar: o fortíssimo e denso “Minha mãe se matou sem dizer adeus” (2010) e o hábil jogo entre o destrambelho e o perecível de “O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam“ (2013).

Em “Os piores dias...”, diante do malogro da vida, entre doença e reclusão, a personagem se ergue quando “pensa ver coisas”, se seguimos Montaigne, isto é, se ergue quando se vê numa deambulação livre da imaginação, mesmo que tenha o corpo imobilizado “horas seguidas sem entrar ninguém para limpar minha boca babujada de saliva; onde fica cada vez mais difícil acomodar-me à condição humana”. Deambulação imaginativa que lembra Manuel Bandeira na construção de sua paisagem fabulosa, promessa para sua adolescência interrompida pela doença, a Pasárgada em que se pode “viver pelo sonho o que a vida madrasta não nos quis dar”.
No livro de Evandro, a utopia modernista de Bandeira se converte na “metrópole apressurada” que é a cidade de São Paulo entre suas marcas e monumentos. Ao lado de espaços assinalados pela mesmice que os apaga, aparece também a cartografia íntima e desejante da narradora, devassada por “vírus diabólicos, de vitalidade assombrosa, obstinados em suas maldades, imoladores de vítimas humanas”. É como se tentasse lançar seu corpo vivo e despido no mundo para correr todos os riscos de contágio, o que só é possível através da imaginação: “vontade súbita de sair sem destino [...] vencer distância; simular propósitos; fingir adventos; ir para desconcertar os planos de volta; não entrar duas vezes na mesma paisagem; conservar-me afastada deste-daquele quarto fúnebre; viagem utópica; viajar para correr perigo nas curvas acentuadas; arriscar-me”.
O livro desenha ainda uma suposta conversa entre essa mulher doente e Antígona, figura da mitologia grega, que comparece como uma espécie de imagem invertida, inalcançável, desejada e evocada, a luminosa carpideira dos desafortunados. Antígona, cuja morte é afirmação de vida e de coragem, opõe-se à mais essa vida desbotada e desistida, sem feito ou bravura, muito ajustada ao enorme espectro de personagens desvalidos que, sempre ao som de um jazz, o autor cataloga desde “Grogotó!” e que, aos poucos, solta no mundo, livro a livro, numa seriação curiosa de sua única história possível.

* Júlia Studart é poeta e professora da Escola de Letras daUniRio. Publicou, entre outros, “Vidas desengraçadas — O gesto de Evandro Affonso Ferreira” (Dobra Editorial, SP]) e “Nuno Ramos” (Coleção Ciranda da Poesia, EdUerj)

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