Frederico
Esses
dias um amigo me disse triste e com raiva que ouviu de uma amiga que dinheiro é
uma coisa íntima. Que havia escrito algo sobre isso porque entendeu que de fato
a amiga tem razão. Disse que me enviaria o texto, que não era nada muito elaborado,
que era muito mais o desenho de uma memória que – segundo ele – tinha a ver com
uma cidade e uma vida que podia ter havido antes do dinheiro. Na hora em que o
ouvia tentei elaborar para mim mesmo algo mais sofisticado, tentei partir da
imagem de duas crianças que corriam na praça em direção a nada, bem do nosso lado,
enquanto alguém as chamava pelos nomes. Mas não era apenas isso. Fiquei
pensando numa laceração, ou seja, fiquei pensando acerca de uma economia íntima
do dinheiro que rege de fato as circunstâncias mais ordinárias da vida de todo
mundo, a minha, a dele, a das pessoas ao redor, daquelas duas crianças que
correm e não atendem alguém que as chama pelos próprios nomes.
Tudo
isso tem a ver, pensei ainda olhando forte os olhos e a voz de meu amigo que se
envolvia com o que dizia, cada vez mais, muito simplesmente com uma guerra que
podemos chamar de uma lei de posse e de uma violência moral e estúpida com
nossos próprios corpos. A que, a quem e como pertencemos a que e a quem quando
a dimensão de toda nossa anterioridade pode ser uma dádiva futura de nossa
próxima dívida?
E
acabo de ler o texto que ele me envia com um aviso de que é um texto torto. Esta
palavra não desgrudou mais de mim enquanto lia devagar cada pedaço do que
tentou me dizer antes. Torto tem a ver com o diabo ou, melhor, com uma proposta
diferente para confrontar toda normalidade que aparece todos os dias pra nós
como um convite qualquer.
O
texto, de fato, me confronta com a cidade que conheci como uma esfera aberta,
fui recebido por ela muito à toa: cheguei ali aos 15 anos, no Álvaro Weyne,
perto do Bairro Ellery, vizinho ao Monte Castelo, no final da rua Olavo Bilac numa
zona de lama preta e abandono amoroso. Foi um começo estranho, não gosto dos
poemas de Olavo Bilac, não gosto desse nome puro. Mas a cidade tem nome de
forte e quero contar a meu amigo, porque seu texto torto me fez perder o pudor,
que nela entendi que estava diante de tudo o que tinha: minha imensa solidão e
meu próprio cadáver. E que aos pouquinhos, nessa cidade plena de anterioridade,
descobri as coisas mais intensas de minha vida: os melhores amigos que carrego
comigo numa expandida e convicta imaginação de que todas as cicatrizes não se transferem.
Gosto
de pensar nessa cidade como um lugar afetivo, ela é a minha moeda falsa. Que um
dia vai ser possível voltar a andar na rua como fiz tantas vezes, encontrar
alguém que nunca vi e nunca ouvi a voz e mover ali, nos poucos minutos que nos
é dado a cada dia, um abraço e um pouco de escuta e conversa. Sei o quanto é
fundamental não adiar isso e trocar todos os gestos intensamente como uma forma
amorosa de coragem: ter sempre à mão algo
a alguém antes que nos falte tempo. Muitas vezes tenho medo de perder a
fala porque algo se impôs entre mim e o mundo, tenho medo de não saber
responder o que é o morto.
E
ainda penso em meu amigo e suas superfícies de vinco e fome, com apetite de
vida. Quero dizer a ele que o dinheiro, que de tão forte nos rouba a tudo, até
mesmo o direito ao nosso mais saliente segredo, talvez seja a nossa grande extimidade: porque expõe a víscera
fingida de toda negação do outro. Talvez não possamos mesmo fazer nada contra
isso, mas sei que ainda preferimos pensar o tempo inteiro que sim, porque o
outro é sempre o lugar da paixão e do amor, e porque conseguimos nos concentrar
em cinco ou seis ou sete coisas do mundo ao mesmo tempo.
E
aí, quero dizer ao meu amigo depois de ler o texto que ele me enviou, muito
devagar, que entendo que é preferível muitas vezes correr em direção a nada, esquecer
propriamente que temos um nome e ter como intimidade apenas uma pequena convicção:
a de que ainda podemos mudar a cidade que escolhemos pra morrer.
Esse texto, 'Frederico', faz parte de um trabalho
em construção intitulado 'Meus amigos
falam muito' numa parceria com Fred Benevides. [manoel ricardo de lima]
Amigo, Assim como a sexualidade, essa questão de dinheiro eu nunca entendi bem. Não sei o por quê. Me incomoda um comentário: Ah... amigo tal está bem, está ganhando 25 mil. Ah... gente tal está bem, tem uma casa de um milhão. Nunca entendi ao certo esse depois da vírgula. Vi gente com milhões se matando. E gente fazendo tudo para sobreviver, sem pensar nas dezenas de mil, e muito menos milhões. O dizer do numerário me incomoda.
ResponderExcluirpois é, nonô, esse é o ponto. belchior tem sentido: "esses casos de família e de dinheiro eu nunca entendi bem". bom tê-lo por perto. e o lance: não estamos para viver, mas para sobre-viver. é a nossa tarefa da e com a alegria.
ExcluirA pessoa é um lugar de pertencimentos. O corpo da pessoa, o único lugar absoluto. Para desfazê-lo do absoluto, apenas a direção em face do corpo de Outrem. O dinheiro não apenas mascara a relação. Torna-a esquemática, fixa-a numa axiomática, faz-se esquelética de um lugar. instigantes esses amigos de vocês.
ResponderExcluirgrande leo. assim você aparece e traz um ar bom de visita amiga. ainda preciso de seu endereço postal pra enviar uns livros a você. aquele almoço no faustino e toda aquela conversa uma tarde inteira estão guardados no coração. é também o que nos resta dessa cidade com nome de forte.
ResponderExcluireu que sou morto de mal educado pois não respondi ao gentil e-mail do Manoel. vou responder com endereço e tudo (estou de férias). na cidade com nome de forte o limite é o mar. abraços.
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