terça-feira, 23 de outubro de 2012

quando não estou por perto,


Jornal O Globo, Caderno Prosa, 20.10.2012

A violação da linha e a bola de ferro

por Júlia Studart e Manoel Ricardo de Lima

O novo livro de Annita Costa Malufe, intitulado ‘quando não estou por perto’ [Editora 7Letras], não só recupera e conversa com a perspectiva de todo um projeto que está em seus três livros anteriores, tudo muito singular, como sugere um jogo do poema que tem a ver com a figuração de UM OUTRO como liberdade. Isto se deve, nos parece, a um empenho em direção a um fracasso da comunição e ao problema do com. Os títulos que desenham os começos de seus livros, por exemplo, são sempre frases ou anotações perdidas que também funcionam como anúncios, avisos, modos inócuos de chamar a atenção ou são aquilo a que Levinas denomina como “relações transitivas” quando diz: “Toco um objeto, vejo o outro; mas não sou o outro”. O primeiro livro de Annita se intitula ‘fundos para dias de chuva’; o segundo, ‘nesta cidade e abaixo de teus olhos’; e o terceiro, ‘como se caísse devagar’. Daí em diante é possível entender que o título deste livro publicado agora volta ao traço e à pertinência disto a que chamamos de projeto.
Mas é depois do primeiro livro – quando a maioria dos poemas ainda aparece como peças demarcadas, com títulos e supressões de linha, ou seja, com uma medida que impõe uma espécie de ideia do verso – que se começa de fato a ler e ver [porque ler é ver] um esforço para compor um arriscado traçado com a linha e para a linha seguindo uma sugestão que está nas tentativas de mover um ritmo, estabelecer um tom, pontuar uma série de andamentos e variações entre o que aparece como palavra-corpo e, ao mesmo tempo, como palavra-som. Talvez aí, importante dizer, que é a partir de seu segundo livro que se pode notar o enfrentamento, o encontro e o contato direto com aquilo que vem de um trabalho de composição musical através da presença, como parceria, do músico Silvio Ferraz.  
Assim é muito interessante notar como os textos que Annita Costa Malufe escreve percorrem as páginas não apenas como poemas, se numa conformação do gênero ou até mesmo como uma ruptura; nem apenas compondo a forma do poema longo, tal como é possível ler na poesia de Jorge de Lima, de Joaquim Cardozo ou de Mário Faustino, por exemplo; mas sim numa violação da própria ideia de linha, de verso, de poema, de poema longo e, fundamentalmente, desta figura anódina do eu-lírico, noutro exemplo: “dizer estou aqui não é mais dizer o mesmo lugar”. Eu-lírico que não acessa mais a sentido algum, porque – nos parece – faz muito tempo que o problema em torno dessa figuração, desse semblante, já é UM OUTRO, um ‘alter’, uma ‘alteração’; e na poesia moderna basta ver o caso Fernando Pessoa e sua heteronímia praticamente apontada ao infraleve de Marcel Duchamp.       
Ela escreve uma espécie de mesma linha, esticada até o limite, oscilante, irrespirável e interrompida várias vezes numa seriação de vincos. A certa altura se lê: “uma violação / uma rápida vista do horizonte / queimado”. O que temos é a ilusória ideia de linha reta em contraponto ambivalente com a linha natural e sinuosa do mundo, imprevisível e curva, armando um descompasso à noção de fragmento. E depois: “interromper o verso onde acabaria / a linha onde recomeça a linha o refluxo / onde se daria a redobra da linha o retorno / inevitável a continuação como / continuar como interromper e retomar / este momento é o de hesitar diante do corte / hesitar e não saber como fluir na nova linha / que se desenha ou se borra logo abaixo no / branco abaixo o tapete sob os pés de metal”. Como aponta Mario Perniola, o fragmento não é apenas uma manifestação da descontinuidade, da incoerência, da dilaceração da experiência ou de um dinamismo convulso e febril de uma atividade, porque assim ficaríamos com a vertigem de nossa incapacidade a projetos maiores, que exigem mais fôlego, desde a modernidade monstruosa; mas, ao contrário, é fundamental perceber o fragmento numa compreensão e num uso mais sutis, diz ele, “através do seu confronto com o não-finito”. E aí, entendemos, a questão pode se virtualizar agora nas fissuras do presente. O que está em jogo é o hieróglifo, ou seja, o que está em jogo no mais fundo de uma especificidade é “o rastro indelével do outro”, como afirma Peter Sloterdijk.
De certo modo é isto o que se pode ler/ver no projeto e também neste novo livro de Annita Costa Malufe como um engendramento de uma partitura falada e de um tecido que é o tempo inteiro uma música informe. Como se pode ler nos trechos a seguir: “[...] / a xícara de café gosto de olhar o teu rosto nestes / dias mais escuros vigiar o traçado que risca o teto / a luz cavoucando a lembrança de um dia / opaco em que você me diria para ficarmos juntos” e “ao meu lado sobre a cama teus cabelos cobrindo / o rosto o teu rosto inclinado entre as minhas pernas / a imagem que gravei as palavras que esqueci / por que choro por isto me pergunto mas lavo o rosto / sem pensar de novo mais uma noite não faz diferença / o que chamo de cama esta montanha de panos / sobre o chão de um quarto mal iluminado e um / céu que não reconheço”.
É ponto notar que o seu texto se modula extensivamente na superfície do interior [“forma orgânica contraposta à forma mecânica”] e que todo o seu projeto, que desemboca agora e por enquanto neste livro, tem a ver não mais com a constituição de uma obra e, muito menos, com a convicção arrivista de que uma produção de pensamento, um trabalho com a linguagem, é antes um acontecimento ligado à publicidade [esta falência inoperante do mundo dito hipercivilizado que desfaz a própria ideia de ‘acontecimento’]; mas sim que seu trabalho é um esgotamento [um ‘não ainda] e um ‘não’ efetivo a “essa mania de o mundo, desorientado, interromper, a cada momento, com pedidos de esclarecimentos, quem pensa”, como escreveu Gonçalo M. Tavares. Annita Costa Malufe é uma poeta sofisticada que se desequilibra e desequilibra inteligentemente o que faz no seu texto, entre a filosofia e o poema, para perseguir o paradoxo do fragmento sugerido por Perniola: “quando ele não é completamente fragmentário, mas bastante coeso e unitário, como uma bolinha de ferro.”

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