Diário 1938
Roma, 5 de fevereiro de 1938
Sonhos de humilhação, de humilhação.
Numa dessas noites,
sonhei com a praça Monte de Piedade (daqui a pouco, ainda nesta manhã, terei
que colocar novamente a minha máquina de escrever para trabalhar). Quartos
grandes com piso em forma de losangos largos, empoeirado, opaco. No fundo de um
enorme quarto, três ou quatro portas. Mas no sonho, eu pego a minha máquina de
escrever. A jovenzinha diz que ela está no nome de G. M. (isso está associado à
lembrança de muitos dias de miséria). Eu o nomeio, mas temo comprometê-lo. Sei
que à procura do Monte eu caminhei com a minha máquina pela Rua XX de Setembro.
Cancelas, igrejas, pelos lados. Entro numa casa atulhada, com sofá coberto por
falsos damascos, uma mulher que costura com sua máquina. Grito-lhe alguma
coisa. Desço novamente a escada estreita.
Sempre sonho que voltei a dar as minhas
aulas interrompidas, a ruína é imediata.
Ontem sonhei com Odradek: (conto de
Kafka). Estava numa sala com estantes de madeiras, eram baixas (tem a ver com a
minha casa de infância, com o sonho do peixe). Liana F. aparece, dão um lugar
para ela numa mansarda, ou seja, sobre um plano das estantes (ela
vem a Paris). Mas Liana F. é Odradek, um ser pequeno, assim como um novelo, e,
diferentemente dele, é de carne escamosa, humilhada, sem forma. Sinto a
sensação dolorosa que pode provocar um tumor, uma crosta, também porque o meu
irmão a joga no chão com violência. “Ah!” grito, gemendo, e sempre fico com
receio de que a tenha matado, mas vejo que ela ainda se arrasta, viva. (Ligação
tríplice: no dia anterior tinha visto que a Minotaure publicou Odradek com
pequenas figuras de um Odradek semelhante a um homem ou a um inseto – alguns
dias atrás li um conto sobre Paris de Liana F. – Meu irmão conhece Liana F.).
Nesta noite, mais uma vez, o sonho de
minha irmã de quinze anos, e ainda as escadas do meu prédio. Hospedei a minha
irmã por uma noite, talvez de má vontade? De manhã, olho a parede ao lado de
sua cama: – O que são – pergunto – aqueles pregos enormes? – Na realidade, não
se vê nada, mas, ao mesmo tempo, eu sei que existem. Logo a minha
irmã se ofende, humilha-se. Na realidade, essa adolescente passou a ter uma timidez
esquiva, grosseira, com aquele pudor atormentado e um pouco enfurecido da
própria carne e existência que, talvez, os filhos têm por causa da presença e
por causa dos hábitos de minha mãe. Assim, minha irmã foi embora. A meu ver,
está seminua, desce as escadas devagar, com um lamento demorado, os olhos
cheios de desalento e de acusação, um estranho sorriso trágico e imóvel nos
lábios, e, no mais, caminha com um andar solene de uma dama. “Que garota
teatral!”, penso. De fato, parece que se sente no patamar, vejo-a enquanto
desce a escada, e as pessoas sussurram pelas portas. O seu lamento é muito
forte, quase um grito. Desce agora como se caísse de um precipício, sem olhar
para os lados, alucinada. “Não há do que sentir vergonha, – penso – é minha
irmã, mas não mora comigo. Nunca mais a receberei”. E penso, ao mesmo tempo:
Teria que chamá-la de novo. Por que não o faço? Está quase chegando ao portão
-. Vejo rapidamente a rua, e, então, a chamo: – Maria! Maria! – Ela volta com
pressa, subindo novamente as escadas, com os olhos lúcidos e com um ar sempre
teatral, tragicamente resignada, e com aquele sorriso contínuo. Sobe, sem
parar. – Eu não queria ofendê-la, de verdade, – digo para minha mãe. – Não irei
acusá-la. Apenas observava, olhe, ali na parede, aqueles pregos enormes -.
Acredito que a minha mãe me dê razão.
Algumas coisas em que Freud encontraria
certos símbolos sexuais. Mas, sobretudo, humilhação, culpas vagas, pudor
ferido. Então, o quê?
Elsa Morante, Diario 1938. Torino:
Einaudi, 1989, p. 31-33, trad. Davi Pessoa.
que maravilha, meus amigos. Zizek no seu pequeno "direitos humanos para Odradek" diz que, hoje, para ler Kafka precisamos nos aproximar novamente da nossa ingenuidade infantil. Sim, nós conseguimos perdê-la, mas precisamos buscá-la novamente. Fiquei muito feliz com o gesto da amizade, ainda mais que nestes dias estamos por aqui mergulhados na ingenuidade infantil, com a pequena Iara. Grazie mille, pois ando por aqui, ainda, tentando desfazer a ruína imediata (assim parece a nossa tarefa ainda), com amor e amizade, beijos, babi.
ResponderExcluirVocê é amigo mais do que especial, Babi, você é da família, da casa, do coração.
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