jogo de varetas,
“‘Eu não sei muita coisa’, disse olhando preto e
redondo para mim. ‘Mas posso contar uma história’, continuou disfarçando a voz.”
As frases iniciais da primeira narrativa de Jogo
de varetas sintetizam, de maneira exemplar, aquela que talvez seja a
questão fundamental deste novo livro de Manoel Ricardo de Lima. Seus
personagens estão ou se sentem deslocados, como se ainda não tivessem se
encontrado ou encontrado seu lugar no mundo. Por vezes, parecem não saber nem
mesmo quem são; o próprio nome lhes foge: “O meu nome eu não sei, ao menos não consigo lembrar agora”,
afirma o narrador de “Sertão”. Essa situação, em alguns casos, está associada a
uma lesão ou a uma deficiência. E é precisamente aí, quando o corpo falha,
quando o corpo falta, que o tato – o contato – se faz mais importante. Até
porque não há corpo que não seja, em si, antes de tudo, falta; a possível
completude de um corpo parece estar sempre em outro corpo, em outros corpos. “Nossa
vontade é permanecer perto uns dos outros, todos, assim mais ou menos uns
quinze que somos, abraçados, mesmo que mutilados, mas intactos”, lê-se em “Isto
é uma imagem”.
Contar
uma história, a tarefa a que os
personagens de Manoel Ricardo de Lima se agarram, é forjar uma possibilidade de
vida. A narração proporciona, em certa medida, uma reinvenção de si, a partir
da transformação do eu num outro – e do impossível em novamente possível. Quem
se põe a contar sua própria história chega sempre a um ponto em que já não
conta a própria história. A história
e ele mesmo já são outros. Daí que a incapacidade de produzir narrativas seja
percebida como um fardo: “Queria ter histórias”, lamenta o personagem de “Os
comedores de pão”, “mas não tenho histórias, o que é um problema para mim”. Num
dos textos mais fascinantes do livro, “Tabelionato”, um homem encera tábuas ao
mesmo tempo em que escreve nelas. O seu gesto é mecânico; a sua vida se reduzira
à repetição infinita desse gesto: ele se convertera numa verdadeira máquina de
escrever. No entanto, se o único gesto que lhe resta é o de escrever, há
esperança: como frisa o narrador, “escrever ainda é humano”. E escrever só é
humano na medida em que esta atividade coincide com a possibilidade de
libertação: “Ele não se move, apenas escreve, isto é subversivo”. Ao facultar a
transformação do eu num outro e, por consequência, a experimentação de novas possibilidades
de vida, os atos de escrever e de contar uma história aparecem como atos
eminentemente políticos. Talvez por isso o livro se abra não com um prefácio,
mas com uma “ameaça”, assinada pelo próprio autor. Nenhuma subversão maior que
tornar a vida, de novo, possível.
por veronica stigger
as mãos,
{outro livro
Uma primeira edição deste livro foi
impressa pela editora 7Letras em julho de 2003. Recortei trechos e enviei a
alguns amigos, pedi que gravassem a leitura em fitas cassete e me enviassem.
Nos lançamentos provocava uma audição das fitas e apresentava cada um dos
amigos e seus trabalhos. Montava o texto numa outra série de composição redesenhando
a sintaxe com outras vozes. Havia também um manuseio na troca das fitas, seu
rápido envelhecimento e a dificuldade de onde conseguir tocá-las. Tudo isso, me
parece, tem a ver com o desenho impreciso desse pequeno livro: um limite entre
o poema e a narrativa numa espécie de experiência móvel e desamparada, um limite
artificial, que seja, em torno de uma guerra, de uma cidade e de uma história
de amor. Feito numa edição pequena, o livro praticamente desapareceu.
Depois, a artista visual Elida Tessler
montou um trabalho muito bonito a partir de uma frase do livro. Há um exemplar
único, recortado e transformado em álbum de retratos, que pertence a Sofia
Sabóia Lima. O DJ Guga de Castro armou um uso das fitas, transformou em
arquivos de computador; assim as leituras ainda existem. O artista visual Antonio
Sérgio Bessa, que também é escritor e vive fora do Brasil há muitos anos,
tradutor dos poetas concretos brasileiros, de Waly Salomão, Francisco Alvim e
Torquato Neto etc, traduziu o livro para o inglês e me disse: “O que me
interessou no seu trabalho desde o início foi certa pulverização sintática do
texto, o que me deu um senso de liberdade muito grande, uma permissão de reinventá-lo
em outra língua”. Francisco dos Santos, da Lumme Editor, em 2006, aceitou publicar
o jogo. E fizemos uma segunda edição menor ainda: 120 exemplares, dois cadernos
dentro de uma caixa, bilíngue, mas sem nenhuma ideia de permanência. Boa parte
da edição foi enviada para o Sérgio Bessa, em NY, onde vive.
Agora,
quando o Jorge Viveiros propôs editar o meu Jogo de Varetas, sugeriu também reeditar este As Mãos, publicar os dois ao mesmo tempo. Convidei a Rachel Caiano,
artista portuguesa que tem um traço encantado, para fazer algo com as capas que
embaralhasse esses livros tão distantes no tempo. Agradeço muito a todos esses
amigos, desde o começo, que fazem deste livro sempre ‘outra coisa’. Por
isso é praticamente uma obrigação continuar o móbile: retirei e refiz trechos, aproximei
o texto aos do Jogo de Varetas, é
outro livro. Mas continua a ser, para mim, uma guerra e um corte abrupto. Para Euré,
no céu.
manoel ricardo de lima
Muito bonito e forte tudo isso aí. Gostei muito.
ResponderExcluirParabéns.
Vou procurar e comprar esses livros, parecem
muito interessantes.
Abraço em vocês daqui de longe,
JC
As Mãos já li: magnífico texto. Um texto verdadeiro. Jogo de Varetas vou ainda começar a ler, mas o breve ensaio de Veronica Stigger abre bem o apetite, não?
ResponderExcluirAbraço para Júlia e Manoel!
Gustavo
querido gustavo, obrigado por sua leitura e seu carinho atencioso com as coisas que fazemos. guarde sempre nosso abraço, nossa amizade. até já, é o que esperamos.
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