terça-feira, 31 de janeiro de 2012

ricardo piglia e chão da feira,


Em 1985, o escritor italiano Italo Calvino preparou uma série de conferências para serem lidas em Harvard com o título de Seis propostas para o próximo milênio. As propostas de Calvino tinham a ver com a pergunta: o que acontecerá com a literatura no futuro? A minha fé na literatura do futuro – apontava Calvino – consiste em saber que existem coisas que só a literatura, com seus meios específicos, pode dar. Então, enumerava alguns valores ou algumas qualidades próprias da literatura que era necessário conservar ou que seria desejável que persistissem. Para possibilitar uma melhor percepção da realidade, uma melhor experiência com a linguagem. E, para Calvino, essas propostas eram a leveza, a rapidez, a exatidão, a visibilidade, a multiplicidade... Na realidade, as seis propostas previstas ficaram reduzidas a cinco, que são as que se encontraram escritas depois da morte de Calvino.
Pensei que talvez se pudesse escrever essa proposta que falta. Qual seria a sexta proposta não escrita para o próximo milênio? E qual seria essa proposta se fosse escrita em Buenos Aires, se fosse escrita a partir deste subúrbio do mundo? Como nós veríamos o futuro da literatura ou a literatura do futuro e sua função? Não como o vê uma pessoa em um país central, com uma grande tradição cultural. Colocamo-nos, então, este problema a partir da margem, a partir das bordas da tradição cultural, olhando de viés. E este olhar enviesado nos daria uma percepção, talvez, diferente, específica. Há uma certa vantagem, às vezes, em não estar no centro. Olhar as coisas desde um lugar levemente marginal. Como veria esse problema um escritor argentino, como poderíamos imaginar esse valor suplementar que pode existir? A tentativa de imaginar que valor poderia persistir é, obviamente, uma ficção especulativa, uma espécie de versão utópica de Pierre Menard, autor do Quixote. Não tanto como reescreveríamos literalmente uma obra-prima do passado, mas como reescreveríamos imaginariamente a obra-prima do futuro. Ou (para dizê-lo ao modo de Macedonio Fernández) como descreveríamos as possibilidades de uma literatura futura, de uma literatura potencial. Imaginar as condições da literatura no porvir supõe também, obviamente, inferir a realidade que essa literatura postula. A literatura diz o porvir, diz como dizer bem o porvir, como imaginar uma vida possível, um mundo alternativo.
Há, então, nesta ideia de proposta, a noção implícita de começo, não apenas de final – os fins da história, dos grandes relatos, como se diz –, mas algo que começa, que abre caminho. Propostas então como instruções, pontos de partida de um debate futuro ou, se se prefere, de um debate sobre o futuro, empreendido desde outro lugar. Mas também há uma pergunta sobre o limite. Talvez o fato de escrever a partir da Argentina nos confronte com os limites da literatura e nos permita refletir sobre os limites. A experiência do horror puro da repressão clandestina – uma experiência que frequentemente parece estar além da linguagem – talvez defina o nosso uso da linguagem e a nossa relação com a memória e, portanto, com o futuro e o sentido. Há um ponto extremo, um lugar – digamos – do qual parece impossível aproximar-se com a linguagem. Como se a linguagem tivesse uma margem, como se a linguagem fosse um território com uma fronteira, após a qual está o silêncio. Como narrar o horror? Como transmitir a experiência do horror e não só informar sobre ele? Muitos escritores do século XX enfrentaram esta questão: Beckett, Kafka, Primo Levi, Anna Akhmátova, Marina Tsvetáieva, Paul Celan. A experiência dos campos de concentração, a experiência do gulag, a experiência do genocídio. A literatura prova que há acontecimentos que são muito difíceis, quase impossíveis, de transmitir: supõe uma relação nova com a linguagem dos limites.
Gostaria de apresentar o exemplo do escritor argentino Rodolfo Walsh, analisar o modo que tem um grande escritor de contar uma experiência extrema e transmitir um acontecimento impossível. Gostaria de recordar o modo como Walsh conta a morte de sua filha e escreve o que se conhece como “Carta a Vicky”. Depois de reconstruir o momento em que se inteira da morte e o gesto que acompanha essa revelação (“Escutei teu nome mal pronunciado, e demorei um segundo para assimilá-lo. Maquinalmente comecei a benzer-me como quando era criança”), escreve: “Esta noite tive um pesadelo torrencial no qual havia uma coluna de fogo, poderosa, mas contida em seus limites, que brotava de alguma profundidade”. Um pesadelo quase sem conteúdo, condensado em uma imagem quase abstrata. E depois escreve: “Hoje no trem um homem dizia: ‘Sofro muito. Queria deitar e dormir e acordar daqui a um ano’”. E conclui Walsh: “Falava por ele, mas também por mim”. Me parece que esse movimento, esse deslocamento, dar a palavra a outro que fala de sua dor, um desconhecido num trem, um desconhecido que está aí, que diz “Sofro, queria acordar daqui a um ano”, esse deslocamento, quase uma elipse, uma pequena tomada de distância com respeito ao que se está tratando de dizer, é quase uma metáfora: alguém fala por ele e expressa a dor de um modo sóbrio e direto e muito comovente. Faz um pequeníssimo movimento para conseguir que alguém por ele possa dizer o que ele quer dizer. Um minúsculo deslocamento, então, e aí está tudo, a dor, a compaixão, uma lição de estilo. Um gesto que me parece muito importante para entender como se pode chegar a contar esse ponto cego da experiência, que quase não se pode transmitir.
Walsh utiliza o mesmo deslocamento na carta em que conta as circunstâncias da morte de Vicky, “Carta a meus amigos”. Narra o cerco, a resistência, o combate, os militares que rodeiam a casa. E, mais uma vez, para narrar o que aconteceu ele dá a voz a outro. Diz: “Chegou-me o testemunho de um desses homens, um recruta”. E transcreve o relato do homem que estava ali, sitiando o lugar. “O combate durou mais de uma hora e meia. Um homem e uma moça disparavam lá de cima. A moça nos chamou a atenção, porque cada vez que disparava uma rajada e nós nos abaixávamos ela ria”. O riso está aí, narrado por outro; a extrema juventude, o assombro, tudo se condensa. A impessoalidade do relato e a admiração de seus próprios inimigos reforçam o heroísmo da cena. Os que vão matá-la são os primeiros a reconhecer seu valor, seguindo a melhor tradição da épica. Ao mesmo tempo, a testemunha certifica a verdade e permite que quem escreve veja a cena e possa narrá-la como se fosse outro. Como no caso do homem no trem, aqui também o narrador faz um deslocamento e dá a voz a outro que condensa o que ele quer dizer, e então é o soldado quem conta. Ir em direção ao outro, fazer com que outro diga a verdade do que sente ou do que aconteceu – esse deslocamento, essa mudança funciona como um condensador da experiência.
Talvez esse soldado nunca tenha existido, como talvez nunca tenha existido esse homem no trem. O que importa é que estão aí para poder narrar o ponto cego da experiência. Pode-se entender isso como ficção, tem obviamente a forma de uma ficção destinada a dizer a verdade, o relato se desloca para uma situação concreta onde há outro, inesquecível, que permite fixar e tornar visível o que se quer dizer.
É algo que o próprio Walsh havia feito uns anos antes, quando tratava de contar o modo como foi arrastado pela história. No prólogo de 1968 à terceira edição de Operação massssacre, Walsh narra uma cena inicial – narra, digamos, a origem –, uma cena que condensa a entrada da história e da política em sua vida. Está num bar em La Plata, um bar ao qual sempre vai para falar de literatura e para jogar xadrez, e numa noite de janeiro de 1956 se ouve um tiroteio, pessoas correm, um grupo de peronistas e de militares rebeldes toma de assalto o comando da segunda divisão, é o começo da fracassada revolução de Valle, que vai terminar na repressão clandestina e nos fuzilamentos de José León Suárez. Nesta noite Walsh sai do bar, corre pelas ruas arborizadas e por fim se refugia em sua casa, que está próxima do lugar dos enfrentamentos. E então narra. “Também não me esqueço que, agarrado à persiana, escutei morrer um recruta na rua, e esse homem não disse ‘Viva a pátria’, o que disse foi: ‘Não me deixem sozinho, filhos da puta’”. Uma lição de história, mas também uma lição de estilo. Mais uma vez, um deslocamento que condensa um sentido múltiplo em uma única cena e em uma voz. Este outro recruta que está aí aterrado, que está para morrer, é o que condensa toda a verdade da história. Um deslocamento em direção ao outro, um movimento ficcional, diria eu, em direção a uma cena que condensa e cristaliza uma rede múltipla de sentidos. Assim se transmite a experiência, algo que está muito além da simples informação. Um movimento que é interno ao relato, uma elipse, poderíamos dizer, que desloca para o outro a verdade da história.
Creio que a proposta para o próximo milênio que eu agregaria às de Calvino seria esta ideia de deslocamento e de distância. O estilo é esse movimento rumo a outra enunciação, é uma tomada de distância com respeito à palavra própria. Há outro que diz isto que, talvez, de outro modo não pode ser dito. Um lugar de condensação, uma cena única que permite condensar o sentido em uma imagem. Walsh faz ver de que maneira podemos mostrar o que parece quase impossível de dizer. Poderemos dizê-lo se encontrarmos outra voz, outra enunciação que ajude a narrar. São sujeitos anônimos que aparecem para assinalar e fazer ver. A verdade tem a estrutura de uma ficção em que outro fala. Fazer na linguagem um lugar para que o outro possa falar. A literatura seria o lugar em que é sempre outro quem vem dizer. “Eu sou outro”, como dizia Rimbaud. Sempre há outro aí. Esse outro é o que se deve saber ouvir para que aquilo que se conta não seja mera informação, mas tenha a forma da experiência.
Creio, então, que poderíamos imaginar que há uma sexta proposta. A proposta que eu chamaria, então, de distância, deslocamento, mudança de lugar. Sair do centro, deixar que a linguagem fale também na margem, no que se ouve, no que chega de outro.
No ano 2100, quando o nome de todos os autores se tenha perdido e a literatura seja intemporal e anônima, esta pequena proposta sobre o deslocamento e a distância será talvez um apêndice ou uma intercalação apócrifa num website chamado As seis propostas, que nesse tempo serão lidas como se fossem instruções de um antigo manual de estratégia usado para sobreviver em tempos difíceis.

Ricardo Piglia
Tradução de Marcos Visnadi

Este Caderno de Leitura, feito pelo Coletivo Chão da Feira, foi paginado com a fonte Futura e papel A4, escolhido para tornar mais simples a impressão, caso ela seja feita. O texto, a nosso pedido, foi generosamente cedido pelo seu autor, tendo sido já publicado, em 2001, pela Revista Margens/Márgenes, n.2.
Lisboa, Buenos Aires, Janeiro de 2012.



Um comentário:

  1. texto muito legal, e talvez a sexta proposta permaneça e deva permanecer sempre por vir, quem sabe para 2100, valeu!!! abraços, davi.

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