sábado, 21 de janeiro de 2012

Guillermo Rosales no O Globo,

Jornal O Globo, 21.01.2012 [Prosa & Verso]


Romance escrito com ódio
por Manoel Ricardo de Lima
               
Aqui você vai ficar bem – garante. – não se pode fazer mais nada.” e “Porque você há de compreender que não se pode fazer mais nada.”, estas são frases definidoras no romance de Guillermo Rosales, A casa dos náufragos [Cia. das Letras, tradução de Eduardo Brandão], que acaba de ser publicado no Brasil. Quem diz as frases é uma tia, de nome Clotilde, do personagem-narrador William Figueras. Um cubano partido ao meio que, desistido da revolução e de Fidel, vai para Miami em busca talvez e tardiamente do sonho americano ou apenas pra fugir das perseguições a quem era contrário ao novo regime. Figueras é uma espécie de alteração de Guillermo Rosales, um alter; Rosales, entre idas e vindas, foi embora de Cuba em 1979, para Madri, e chega a Miami em 1980. Simpatizante da revolução num primeiro momento e depois mergulhado numa esfera vertiginosa de crises psiquiátricas que o faziam duvidar de toda aquela movimentação a partir da Sierra Maestra: “Odiava a ditadura, não acreditava na autoridade, era rebelde, questionava tudo”, ele afirma já por volta do final dos anos 1980.
Figueras é um doente, esta tia que o recebe pacientemente em Miami termina por levá-lo para uma “boarding home”, um desses abrigos para a escória perdida, e solta as frases. O que resta a Figueras – louco e desvalido, leitor de Proust, Joyce e Thomas Mann – é confirmar o impreciso do não se pode fazer mais nada: “Eu a entendo.” A narrativa exala, a partir desse abandono nessa casa de náufragos, uma dimensão do exílio que se engendra com violência. A “boarding home” não é senão mais uma maneira perversa de acumular dinheiro através de uma opressão desumana em meio ao que é nojento, sujo, fedido etc. Violenta-se o corpo e depois o que sobrar dele, se sobra houver. É esta garatuja visceral que compõe o “romance escrito com ódio” de Rosales, porque é – ao mesmo tempo – a garatuja de sua biografia.
E se toda narrativa autobiográfica pode ser frágil, a de Rosales não constitui esta emenda simplista. Ele andou por essas “homes”, quase um farrapo, descabido, banguela, muito magro, sozinho; mas sempre um “fabulador incansável, imprevisível e agressivo”, lembra Ivette Leyva Martínez, no posfácio à esta edição brasileira. É ela quem lembra também que o romance foi publicado em 1987 porque recebeu voto de Octavio Paz num prêmio literário local, mas depois se apagou sem reconhecimento editorial ou crítico e ainda está por aí um bocado escondido [agora nem tanto]. Uma espécie de vagalume, como sugere o crítico Didi-Huberman, ao dizer da intermitência da imagem dialética que nos leva a compreender de que maneira os tempos se tornam visíveis, tal como a história num relâmpago passageiro: “a intermitência da imagem nos leva de volta aos vaga-lumes, certamente: luz pulsante, passageira, frágil.” Mas sabemos: prêmios, de fato, não querem dizer muita coisa, quase nada; não salvam ninguém nem livro algum. São holofotes que escondem a pequena luz do vagalume. Nem muito menos reconhecimento da crítica que, tantas vezes, está vinculada ao infortúnio do negócio gerado pela festinha que o mercado editorial e suas finanças aceita etc.
A opção de Guillermo Rosales por uma frase impiedosa, pela construção de imagens dissolutas, por uma descrença plena no homem, em Deus, na humanidade, é outra, e leva ao buraco sem fundo de sua narrativa: “à injustiça da vida deve-se responder com a violência e a cólera intelectual, que é a que maiores estragos faz.” E é sua precisão de fabular que estabelece a sua condição de exilado em sua própria língua, em seu próprio corpo, nada mais a ver apenas com território, propriedade, terra, pátria, negócio etc. Diz Figueras logo no começo da narrativa: "Não sou um exilado político. Sou um exilado total. Às vezes penso que, se tivesse nascido no Brasil, na Espanha, na Venezuela ou na Escandinávia, também teria fugido de suas ruas, seus portos e campos." Ou na conversa de Figueras com Tato, um boxeador homossexual, que nos apresenta a conta de que todos os personagens de Rosales são o tempo inteiro farpas de sua autobiografia exilada: “Senta-se à minha frente numa cadeira. Um raio de luz banha seu rosto todo esburacado. – Ouça isto – ele me diz. – Ouça esta história. Que é a minha história. A história de um vingador da tragédia dolorosa. A tragédia do melodrama final que não tem perspectivas. A coincidência fatal da tragédia sem fim. Ouça isto, que é a minha história. A história do imperfeito que se acreditava perfeito. E o trágico final da morte, que é a vida. O que acha? – Bom – digo.” A única esperança para Figueras, por exemplo, é o amor de Francis, uma moradora da casa, tão náufraga quanto ele, mas Sr. Curbelo, o proprietário da casa, impede. É a sobra de vida que têm, Figueras e Francis, que não permite nada; não se pode fazer mais nada.
O pensador italiano Giorgio Agamben afirma que o exílio, quando incorporado por algum componente existencial, é a nossa condição política mais autêntica. Não me parece que a questão seja outra, porque Guillermo Rosales deixa claro e aberto o impreciso de sua literatura com o que é próprio de Cuba e a revolução, mas muito mais com o que é próprio e impróprio do homem e de sua natureza dilacerada. A sua narrativa acompanha com força e imaginação violentas, passo a passo, esse dilaceramento.

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