sábado, 26 de novembro de 2011

O Senhor Henri,

Lançamento:
14 de Dezembro, no Chapitô [Bar Bartô], às 22h
Lisboa, Portugal


Texto publicado na edição O Senhor Henri [a partir do livro homônimo de Gonçalo M. Tavares] que será lançada no dia 14 de Dezembro, em Lisboa, a partir de uma belíssima peça em audio, apresentada pelo grupo "BOCA, palavras que alimentam" [Lisboa, Portugal].

Senhor Henri: absinto e reticências 
por Júlia Studart

Este O Senhor Henri, publicado pela primeira vez em 2003, que agora se apresenta nesta peça em áudio, é um desenho às avessas do poeta Henri Michaux [1899 – 1984], – conhecido por seus textos singulares, próximos do surrealismo, que oscilam entre descrições de mundos imaginários e uma espécie de inventário de sonhos –, traçado por Gonçalo M. Tavares. E é possível dizer que ele é e faz parte de uma imagem capturada por subtração, entre as ações do “anacronismo deliberado” e da “atribuição errônea”, como sugeriu Jorge Luis Borges em seu conto “Pierre Menard, autor do Quixote”. Não se pode deixar de pensar que este Senhor Henri, personagem de Gonçalo, é mútuo e, ao mesmo tempo, transparente ao seu outro, ao seu alter; primeiro porque ele insiste na construção de um universo íntimo, privado, em constante desequilíbrio, porém – note-se – mútuo à alucinação. Insiste também o tempo inteiro numa instabilidade do real, exatamente porque não pratica mais as sugestões paradoxais, mas apenas as imprecisões neutras da ambivalência, ou seja, da sua existência simultânea: “as calças não chegavam aos sapatos e os sapatos não chegavam às calças.”, que “as pessoas que têm azar não deixam de ter sorte.” e, ainda, “que nos dias que correm aprende-se por todos os lados do corpo.” Depois, sorrateiro, este Senhor Henri acha que se alguém do outro lado do balcão só quer saber das coisas de seu bairro “faz muito bem”.
O Bairro é uma série vertiginosa elaborada por Gonçalo M. Tavares, a partir da constituição de uma utopia, em torno da ideia e do conceito daquilo que ainda pode ser tomado como vizinhança. Nele habitam moradores perspicazes, entes mínimos de uma biblioteca de formação, ora equilibristas ora marionetes, reposicionados no mundo através da literatura pelo absurdo da convivência atemporal [eis o “anacronismo deliberado”] numa pequena cartografia poético-ficcional-urbana. O gesto desse projeto é constituir o inesperado na superposição de temporalidades avizinhadas, ou seja, é possível ler aí o conhecimento do futuro no passado, escavar os sulcos das superfícies anteriores e ter ao menos fragmentos dessas superfícies, como sobrevivências. A ideia de uma biblioteca pensada como vizinhança possibilita isso, tanto que Will Eisner, um dos mais importantes artistas de banda desenhada, inventor das “graphic novels” [novelas gráficas], no prefácio de sua novela gráfica intitulada A Vizinhança - Avenida Dropsie, diz que: “Vizinhança tem períodos de vida. Elas nascem, evoluem, amadurecem e morrem.” E, depois, que “As pessoas, não os prédios, são o coração da matéria.” Este projeto de Gonçalo M. Tavares tem a ver, pois, com uma morfologia da vitalidade pura, uma espécie de infância da linguagem, tanto que o próprio Gonçalo já disse muitas vezes que procura assemelhar este seu O Bairro à lógica da aldeia de Asterix, personagem de banda desenhada criada por Albert Uderzo e René Goscinny no ano de 1959, na França. Por isso é possível dizer que, assim como a aldeia de Asterix, este bairro de semoventes de Gonçalo M. Tavares é um lugar que resiste à invasão de bárbaros e que também é um estado excedente num espaço de pequenas dimensões, logo acolhedor e seguro.
Por outro lado, é possível pensar que estes senhores, se são todos vetores de uma mesma matéria, o coração da matéria, são desenhados também como corpos impossíveis, porque guilhotinados [já não é mais o Henri Michaux, mas um outro; o nome é o mesmo, mas quem assina é Gonçalo M. Tavares etc. Eis a “atribuição errônea”]. E, de certa forma, aparecem subtraídos também de suas cabeças à maneira dos retratos que os gravuristas franceses no final do século XVIII faziam das vítimas da guilhotina. Os gravuristas eram todos fascinados com a imagem daquela cabeça suspensa pelas mãos “sombrias e anônimas de um carrasco, numa evocação do gesto triunfante de Perseu ao segurar a cabeça monstruosa de Medusa”, lembra a professora e crítica brasileira Eliane Robert Moraes. Ela diz ainda que “eram as duplicatas da cena original da decapitação, quando as cabeças eram efetivamente isoladas do resto dos corpos para serem expostos à visão pública.” Ora, é interessante pensar, como ela sugere, que se havia a exibição, naquela separação do corpo em duas partes, e atraindo a atenção para a cabeça decapitada, pode-se dizer que a guilhotina é a primeira máquina de tirar retratos. Gonçalo, de certa maneira, inverte o procedimento, mas também guilhotina cada um de seus senhores; depois os sustenta não só pelas mãos, mas principalmente no desenho escrito de retratos inconclusos em que – ao mesmo tempo – é possível ver ali um rosto e é possível ver também nenhum rosto ou tantos outros, como se refizesse também, mesmo que de forma distinta, o gesto de Fernando Pessoa com seus heterônimos. Ou seja, um gesto interessantíssimo para rever e reler a tradição da literatura de Portugal, por exemplo.
Este O Senhor Henri segue bem a inserção de escrita alucinada de Michaux e, numa metamorfose, segue mais de perto ainda, mesmo se num afastamento, o método de composição da escrita do próprio Gonçalo, também sempre ambivalente. Henri Michaux, por exemplo, no pequeníssimo prefácio de seu livro Equador, publicado em 1929, que corresponde ao diário de uma viagem que realizou através dos Andes, das montanhas do Equador e das florestas do Brasil até chegar à foz do Amazonas, diz: “Um homem que não sabe viajar nem manter um diário, compôs este diário de viagem. Porém, subitamente assustado no momento de assiná-lo, atira a si próprio a primeira pedra. É tudo.” A personagem de Gonçalo M. Tavares, Senhor Henri, revolve as dobras das formas de especulação de Michaux, principalmente com os usos ininterruptos e sistemáticos do absinto e das reticências no início das frases ditas por Henri entre a alucinação e o titubeio, mas sem nunca perder de vista o dito firme e apontado: “... eu tenho um sistema geral do pensamento, chama-se absinto”, “... o infinito vem no absinto.”, “... hoje não vou tocar num copo. / ... haverá, então, alguém disponível para me despejar absinto pela garganta?” etc. O resto agora é aproveitar para ler e ouvir este texto: “... mais um copo de absinto, por favor.”   

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