terça-feira, 20 de setembro de 2011

Entrevista, Carlito Azevedo

Entrevista publicada na Folha.com [do Jornal Folha de São Paulo], Ilustrada, em 17/09/2011


"Editar bem poesia é aceitar editar antimercadoria"

por Paulo Werneck

Carlito Azevedo poderia talvez se acomodar na condição de um dos mais celebrados poetas contemporâneos brasileiros. Seu "Monodrama" (2009), publicado pela carioca 7Letras, grande celeiro de novos poetas no país, é um dos principais livros de poesia brasileira dos últimos anos.
Além disso, ele se firma como um grande agitador poético (é curador, com Augusto Massi, da coleção Ás de Colete, editada pela 7Letras e pela Cosac Naify, e mantém uma página mensal de poesia no jornal "O Globo"), articulando livros e autores em discussões que fogem aos chavões sobretudo por não abrir mão de um ingrediente muito escasso nas conversas sobre o gênero: o bom humor.
Tendo a possibilidade de se ver editado nas maiores casas do país, Carlito preferiu manter-se na pequena (embora longeva, com 15 anos) editora de Jorge Viveiros de Castro.
Na entrevista abaixo, concedida por mensagens no Facebook, ele critica os autores revelados por pequenas editoras que "ao primeiro aceno da grande editora se mudaram de malas e bagagens" em busca da "possibilidade de ganhar prêmios, ser convidado para as festas literárias das grandes editoras, para as entrevistas televisivas".
Carlito comenta a recente tendência de novas coleções no mercado brasileiro com ceticismo: para ele, "não se sabe editar poesia no Brasil". Ela saúda o recente investimento da Companhia das Letras em coleções de poesia contemporânea e na aquisição da obra de Carlos Drummond de Andrade, mas vê uma opção conservadora por "uma poesia drummondiana, de qualidade sim, mas não muito inovadora", "nada que vá desestabilizar sua majestade o leitor".
Além disso, critica com dureza editoras como a Record, "que utiliza claramente uns poucos autores de qualidade superior, como por exemplo Murilo Mendes, para mascarar sua ausência de um projeto cultural", e vê com preocupação a saída do amigo e parceiro Augusto Massi da Cosac Naify: "As informações são todas indiretas e desencontradas"; "eu, de todo modo, estou fora, saio com ele".
Ao recapitular as coleções que marcaram historicamente a poesia brasileira desde os anos 70, Carlito enfatiza que a esperança na inserção do gênero no mercado é ilusória: "Editar bem poesia é aceitar editar antimercadoria, é respeitar aquilo que, por sua natureza inovadora e complexa, como disse o poeta português Joaquim Manuel Magalhães, ainda não tem um público, vai inventar o seu público".

Folha - Depois de anos publicando poesia fora de coleções, editoras (da Companhia das Letras à Uerj, com a Ciranda da Poesia) investem no formato de coleções e misturam autores jovens e consagrados (Zulmira e Chico Alvim na mesma coleção de Fabrício Corsaletti e Ana Martins). A poesia encontrou um lugar no mercado editorial?

Carlito Azevedo - Não acredito que a poesia tenha encontrado um lugar ao sol do mercado editorial, nem que, em suas melhores e mais honestas experiências, seja isso o que ela busca. E tenho a pretensão de ter encontrado a razão desse tão longo divórcio entre a poesia e o comércio na Roma Imperial, no século 1º a.C.: é o que chamo de "a maldição de Horácio".
Em Roma, e naquele momento, surgiu o primeiro esboço de algo semelhante às nossas livrarias, as "tabernae librariae", pequenas lojas onde os livros podiam ser folheados e até comprados por gente de fora dos círculos intelectuais dos escritores. Pois bem, é ali, em pleno nascimento do comércio do livro, que o poeta Horácio, o mesmo do "carpe diem", decide se recusar a ter seus livros expostos ao manuseio ou venda nas "tabernae librariae".
Ele chega a escrever assim, na primeira "Sátira": "Nenhuma loja, nenhuma banca terá meus livros / Para que a mão do povo os molhe com seu suor". A maldição de Horácio foi tão poderosa que até hoje é muito difícil encontrar alguém querendo colocar as mãos, sujas ou limpas, num livro de poesia.
O fato é que, em termos mercadológicos, a poesia é uma coisa tão insignificante que, quando, por exemplo, uma editora do calibre da Companhia das Letras passa a ter o privilégio de ser a editora de Carlos Drummond de Andrade, e assume a responsabilidade de ser mais generosa em relação à poesia contemporânea (ela, que, contudo, mantém em seu site, na seção sobre avaliação de originais, um aviso bem claro: "A editora não recebe originais de poesia"), denotando um interesse em qualquer coisa além da rentabilidade (e parece quase pecado e na certa um anacronismo falar isso hoje em dia!), isso já provoca um tremorzinho que, por contraste, parece um terremoto.
Mas note-se que a Companhia está na verdade retomando o ritmo de publicação de poesia que tinha logo no seu surgimento, quando lançou livros memoráveis como o polêmico "O Anticrítico", de Augusto de Campos, as ótimas antologias de William Carlos Williams, Wallace Stevens, Marianne Moore. Depois o ritmo ficou bem mais devagar, e agora ela aparece com essa antologia da nobelizada Wislawa Szymborska, os livros de Chico Alvim, Fabrício Corsaletti, Eucanaã Ferraz, Antonio Cícero, Armando Freitas Filho, Paulo Henriques Britto, Ana Martins Marques, Zulmira Ribeiro Tavares etc.
Para bom entendedor, a mensagem é bem clara: a poesia que interessa colocar no mercado é uma poesia drummondiana, de qualidade sim, mas não muito inovadora (exceção: Chico Alvim, um dos nossos poetas mais experimentais), nada que vá desestabilizar sua majestade o leitor.
De todo modo, que bom que a Companhia está fazendo isso e que bom que conseguiu arrancar a obra de Carlos Drummond de Andrade da editora Record, que utiliza claramente uns poucos autores de qualidade superior, como por exemplo Murilo Mendes, para mascarar sua ausência de um projeto cultural e sua atividade prioritariamente comercial, e também para não passar nas festinhas intelectuais pelos gananciosos que só pensam em vender livro.
Ou talvez isso nem mais os deixe constrangidos, como vimos em recente declaração da editora Luciana Villas-Boas explicando aos novos autores que não é bom estrear com um livro de poesia porque o livreiro vai associar seu nome para sempre a fracasso de vendas. Imagino o Drummond preparando o "Alguma Poesia", ou o Gullar preparando o "A Luta Corporal", ou a Ana Cristina Cesar preparando o "Cenas de Abril", e a Luciana dizendo: "Não façam isso! Vocês serão eternamente associados a fracasso de vendas!". Uma surpresa pra você, Luciana: eles cagavam pra isso!

Você cuidava de uma coleção de poesia, a Ás de Colete, coedição da 7Letras com a Cosac Naify, que também reúne consagrados e estreantes.

A Cosac Naify, em parceria com a 7Letras, mantém a coleção Ás de Colete, ou mantinha já nem sei, uma vez que desde a saída de Augusto Massi as informações são todas indiretas e desencontradas, e incluem até a catastrófica possibilidade de que a editora não vá mais publicar poesia, eu de todo modo estou fora, saio com ele.
Nesta coleção, tentávamos publicar coisas bem diversas, como Cacaso e Michel Deguy por exemplo, e estreantes como Angélica Freitas, coisa que não é comum nas coleções mais conhecidas de poesia, pois mesmo quando se publica um jovem poeta, trata-se de um jovem que já tem pelo menos dois, três livros publicados.
Talvez o fato de duas editoras superpoderosas, e que ao mesmo tempo seguem uma prática cultural séria, manterem coleções de poesia, a que todos podem fazer as críticas que quiserem, mesmo que seja bem difícil demonstrar em que é que a poesia brasileira melhoraria sem elas, signifique sim que vivemos um bom momento editorial. Mas eu me pergunto: de que adianta viver um bom momento editorial se não vivemos um bom momento poético? Aí está o x da questão.

O que muda para autores jovens e consagrados o fato de estarem na mesma coleção?

Que uma coleção de poesia pode ter uma intervenção poderosa na literatura de um momento específico ficou mais do que provado com a coleção Claro Enigma, editada pelo Augusto Massi, nos anos 80, que ajudou a quebrar muitos preconceitos, vencer muitas dicotomias, fez a discussão avançar.
Ao reunir a poesia de Francisco Alvim, mais ligado aos marginais dos anos 70, e a de Sebastião Uchoa Leite, mais próximo dos poetas concretos, a ponto de ter um de seus livros editados pela Coleção Signos, e também a da soltíssima Orides Fontela, e num projeto gráfico que reunia o artesanal, melhor característica da poesia independente, com um sistema profissional de edição e distribuição, vantagem indiscutível da máquina editorial, a Claro Enigma reconfigurou bastante o ambiente.
Dentre os novos que a coleção revelou, quem melhor se saiu foi o Paulo Henriques Britto, que passou a ser levado a sério, e imediatamente saiu de baixo daquele manto de invisibilidade que parece cobrir o poeta iniciante. Mas, se o poeta novo tem essa vantagem ao ser incluído em uma coleção mais ou menos oficial, ao lado de poetas mais ou menos oficiais, por outro lado, mais de uma vez vimos esses mesmos poetas novos se oficializarem, acreditarem demais que isso é que é bom, isso é que importa. É uma ilusão.

A poesia brasileira vive um bom momento editorial? Superou-se a fase da edição do autor e a guerrilha da geração mimeógrafo?

O fim da poesia marginal não foi a abertura política, mas sim a crença de que ser editado por uma editora, e não mais por um mimeógrafo, exigiria deles que se tornassem "poetas de verdade", e foi a liricalha que se viu.
Considerando que a principal coleção de poesia veiculada por editora respeitável nos anos 70, a coleção Signos, da Perspectiva, criada por Haroldo de Campos, publicava gente como Mallarmé, Joyce, o próprio Haroldo, os russos Maiakovski e Khlebnikov, Goethe e Julio Cortázar, não é de espantar que, quando a coleção Cantadas Literárias, da editora Brasiliense, supreendesse o mercado no início dos anos 80 reunindo em volumes caprichados boa parte da produção da produção mimeografada e independente da década anterior, livros como "Passatempo & Outros Poemas", de Francisco Alvim; "Drops de Abril", de Chacal; "A Teus Pés", de Ana Cristina Cesar; "Finesse & Fissura", de Ledusha; "Caprichos & Relaxos", de Paulo Leminski, muita gente boa, como o [colunista da Folha] Fernando de Barros e Silva, classificasse a estratégia de Caio Graco e Luiz Schwarcz como investimento "em temas do cotidiano e textos fáceis para arrebanhar um público sem cultura e carente de referências literárias". Foi um momento raro em que essa "gente sem cultura e carente de referências" sujou muito livrinho de poesia, graças a Deus.

Seu livro mais recente, o celebrado "Monodrama", saiu fora de uma coleção, embora vc mesmo editasse a Ás de Colete. Por que essa opção?

"Monodrama" saiu pela 7Letras quando já dirigia a coleção de poesia que contava com a ótima estrutura da Cosac Naify porque entendia que as pequenas editoras não são um primeiro degrau até chegar a uma grande editora, como julgaram vários autores que publicaram seus primeiros livros na 7Letras e ao primeiro aceno da grande editora se mudaram de malas e bagagens. Penso que elas são uma necessidade cultural que é preciso defender.
Detesto este sistema em que uma editora pequena descobre o cara, e aí vem a editora poderosa, que não quer correr risco absolutamente nenhum, fazer aposta nenhuma, e fica só esperando uma dessas apostas da editora pequena se revelar para levá-lo. O que fazer?
Assim são as coisas, enquanto a editora grande continuar desejando usar o autor interessante para justificar os imensos lucros que conseguem com a publicação de porcarias anticulturais, e o autor continuar trocando seu gesto inicial pela possibilidade de ganhar prêmios, ser convidado para as festas literárias das grandes editoras, para as entrevistas televisivas, coisas que em geral só chegam para os superbem editados, a coisa não muda. E não é coincidência que esses autores piorem tanto com o tempo, é que eles passam a se levar a sério mesmo, a achar que agora eles são escritores de verdade, antes eram apenas uns experimentadores.

Os poetas consagrados, inclusive mortos, são bem tratados do ponte vista editorial?

Os poetas brasileiros, novos ou consagrados, não são, em geral, bem tratados pelas editoras, mesmo nas melhores e mais bem-intencionadas, por causa de um problema estrutural: não se sabe editar poesia no Brasil. Dentre as poucas exceções, só me recordo agora de Cléber Teixeira e sua tipografia Noa Noa, primeiro aqui no Rio de Janeiro, e depois em Santa Catarina.
Não temos nada por aqui como a coleção de poesia da Livros Cotovia, de Portugal. E a guerrilha da autoprodução, que reergueu a poesia na Argentina, através da ação de micromicro editoras --como a Vox, a Belleza y Felicidad, a Tsé-Tsé, a Eloísa Cartonera, Adriana Hidalgo, a Niño Stanton-, parece não encantar mais aos poetas novos, todos em busca do prestígio de uma chancela oficial.
O bonito é que por lá um autor já consagradíssimo como Cesar Aira faz questão de editar seus livros por essas pequenas casas editoriais; é um gesto político impensável aqui no Brasil onde a discussão sobre edição de livros está totalmente despolitizada. Editar bem poesia não é criar um objeto que seja tão vendável quanto um romance, com design arrojado; editar bem poesia é aceitar editar antimercadoria, é respeitar aquilo que por sua natureza inovadora e complexa, como disse o poeta português Joaquim Manuel Magalhães, ainda não tem um público, vai inventar o seu público.

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