segunda-feira, 13 de abril de 2009

entrevista inédita,

com Evandro Affonso Ferreira
por Júlia Studart

Mineiro, da pequena cidade de Araxá, Evandro Affonso Ferreira vive a mais de quarenta anos em São Paulo, onde é livreiro. Publica o seu primeiro livro, Grogotó!, em 2000, já aos 55 anos, livro que ganhou uma nova edição pela Editora 34. É autor ainda de Araã! (2002, Hedra), Erefuê (2003), Zarapempô! (2004) e Catrâmbias! (2005), todos pela Editora 34. Evandro é hoje, a meu ver, um dos escritores mais radicais na criação de um campo possível para a existência da literatura como uma sobrevida. Um gesto mínimo contaminado com uma ética, também radical, de sensibilidades.

1. Você começa a escrever um pouco mais tarde, aos 55 anos. Não é uma coisa comum no Brasil nem ao nosso tempo. Quase todo mundo se lança a escrever muito cedo, e se diz escritor mais cedo ainda. Mas sua literatura aparece quase como um contraponto a isso, e essa parece ser uma marca interessante no seu trabalho. Daí, um acúmulo nas suas leituras até aqui, na sua biblioteca mental até aqui etc, coisas que entram o seu texto como partes incorporadas, já suas. Fale um pouco dessas coisas, e se isto é de fato importante para você.

Sim muito importante; vivo-escrevo na plenitude do tempo; engraçado-curioso sabe-se lá mas diacho verdade uma só: cada frase parágrafo trecho que construo apre cheiro de posfácio Útima Thule derradeiros estertores cousalousa; vivo-escrevo sob o efeito ômega; sou em síntese escritor aquele que tem um grande passado pela frente; comecei sim aos 55 anos; minha letra chega carregada de tinta pretérita; chega cheinha assim de desnecessidades de (por exemplo) espiar de que lado sopra o vento ou andar às apalpadelas essas coisas; já cheguei lido-vivido-corroído quejandos; minha palavra já chegou noduloso calosa corcovada pela própria vida.


2.. A idéia de uma letra carregada de tinta pretérita e de desnecessidades parece também dizer de sua literatura, que não é nem salvação nem nada, mas apenas a sua forma de ainda estar no mundo, escrevendo. Escrever para você, neste momento e ainda, tem qual sentido, então?

Escrevo para não me matar; são as tranquibernices do destino: não gosto da vida mas tenho medo da morte; a letra é minha guarida meu latíbulo; me sinto blindado pela couraça da palavra; escrever é driblar a miúdo quizílias a mancheias; é dar uma rasteia nele tartarugoso-enfastioso dia-a-dia; escrevo enfim para opor resistência ao meu próprio desassossego.


3. Uma das coisas que mais me chama atenção no seu trabalho é como você constrói as suas personagens, e elas mesmas como personagens construídas. São quase todas seres partidos no meio, rachados, sem lugar no mundo, violentados por um cotidiano devorador. Tenho insistido em chamar as suas personagens de “vidas infames”, de “estúpidos”, de “poucos”. Como elabora e de onde parte para a construção dessas personagens? O que mais o encanta em alguns?

São como diria meu querido Francisco Dantas hã os desvalidos; gente bancarroteira; aqueles que claudicaram na vida; já nasceram com a vulnus insanabile – diria meu personagem latinista Seleno Selser; gosto dos descarrilados; Bernard Shaw dizia: “Os gênios não existem; posso dizer isso porque sou um deles”; digo o mesmo dos mal sucedidos.


4. Outro movimento dentro do seu texto é a linguagem que você usa, uma forma de usar a linguagem, num recorte de vocabulário (que não é bem um dicionário seu, inventado por você, mas um vocabulário de uso, que você tomou posse e se encantou com ele) e numa idéia de criar uma potência para essa forma de usar, o seu modo de usar que sai dos seus livros e está na sua escrita, como um todo, e até muitas vezes na sua fala. Como é a sua pesquisa com essa idéia da linguagem, e como você pensa os usos que faz dela em cada um de seus livros até aqui?

Quinze anos atrás folheando dicionário qualquer num sebo tomei conhecimento da palavra bangalafumenga; gostei da sonoridade; comecei incontinenti a colecionar palavras deste naipe; em desuso mas sonora; sou um vivificador das palavras - como disse nosso genial Millôr Fernandes; terminei meu dicionário por assim dizer particular: quase 2 mil palavras todas sonoras; gostaria de ser músico; ou quem sabe o Paulinho da Viola da literatura; aos poucos fui descobrindo que poderia duplicar as palavras; explico melhor: ao invés de usar louco usava zoropitó; mas não contente com isso comecei a usar duas palavras juntinhas com o mesmo significado: zuruó-zoropitó; fulano é zuruó-zoropitó.


5. Fale um pouco da reedição de seu primeiro livro, o Grogotó!, que inicia um projeto contínuo dos seus texto (os seus livros até agora), ou seja, este projeto a que você já chamou de “o-livro-da-ribaldaria-sonora”. E como você pensa a sua literatura no desvão da literatura brasileira contemporânea?

Grogotó! foi reeditado agora pela 34; projeto bonito caprichado; primeira edição saiu pela Topbooks; mas hoje tenho quase toda ela minha obra editada via 34; falta apenas o Araã!; sim verdade Grogotó! foi meu primeiro livrinho de minicontos; gosto muito dele; trabalho apadrinhado pelo querido-saudoso José Paulo Paes; ah minha literatura anda na contramão do tempo; cheguei na hora errada; não sou um autor do futuro e sim do passado; acho que deveria ter nascido literariamente nos anos 40/50 talvez.

7. E o seu projeto atual de livro, Trabuzana, o que ele diz dos seus outros livros, ainda, e o que ele aponta para fora e longe dos seus outros livros. O que pode nos dizer dele?

Trabuzana está na página 50; história que gira em torno de uma jovem de 27 anos que é morta pelo amante poeta sessentão; começa livro com a fala dele poeta dentro de um camburão; ele e um bandido conversam tempo todo; termina primeiro capítulo com poeta sacando arma de um soldado e se matando; segundo capítulo muda o narrador: estudante de filosofia num consultório psicanalítico contando que poeta maldito aquele matou a amada dela estudante; terceiro capítulo terceiro narrador: estudante de Kafka conta numa mesa de bar tragédia que aconteceu com ele: poeta maldito matou a esposa dele doutorando em Kafka; quarto e último capítulo bandido aquele que estava no camburão agora numa cela relembrando tempo em que fumava crack etc etc etc; primeiro livro em que me preocupo com ela história; normalmente me preocupo com a forma ligo jeito nenhum pro conteúdo.

8. E para finalizar, Evandro, me diga um pouco de suas leituras. O que tem lido de seus contemporâneos, o que gosta mais ou menos, o que prefere, o que suporta, o lhe provoca encantamento e quejandos (como gosta de dizer) e o quanto estas leituras interessam ao seu trabalho de escritor?

Leio-releio pessoal de sempre: Robert Musil Bruno Schulz Kawabata Cornélio Penna Antonio Lobo Antunes; sou um velho chato; não tenho mais paciência para o mais-ou-menos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário