terça-feira, 6 de janeiro de 2015
domingo, 19 de outubro de 2014
Tatu, Museu de Arte do Rio
Jornal O Globo, 17 de outubro de 2014
Exposição no MAR
toma imagens da caatinga e do futebol para refletir sobre arte e nacionalidade
Com curadoria de
Eduardo Frota e Paulo Herkenhoff, mostra "Tatu" termina neste sábado
POR MANOEL RICARDO
DE LIMA*
Na canção “Retórica
sentimental”, Belchior, nosso bartleby e gênio, escreve duas de suas linhas
mais inventivas acerca de uma ideia de lugar: “Moro num lugar comum, junto
daqui, / chamado Brasil”. Essa condição estabelecida e fixada pela distância,
entre um incomum e um junto daqui que se despedaça no nome próprio (nação,
valor, fronteira etc), só pode ser minimamente reengendrada, como diversa e
adversa, se percorrida na sua largura de deslocamento e, principalmente,
descolamento. A curadoria da exposição “Tatu: Futebol, Adversidade e Cultura da
Caatinga”, no Museu de Arte do Rio (MAR), feita pelo artista Eduardo Frota e
pelo diretor do museu Paulo Herkenhoff, que teve início no meio da Copa do
Mundo, impõe uma singularidade exemplar em torno dessa questão.
Eles anotam que a
redução do tatu-bola a um mascote azul e símbolo do futebol global esfacela, de
todo modo, a perspectiva de um pensamento simultâneo a partir da adversidade
como história e cultura de e para a resistência. Note-se aí uma resistência que
vem, sobremaneira, na figuração da caatinga, não como circunstância regional ou
representação, mas como presença e empenho, e no jogo de futebol — não este que
se contorce como um espetáculo burocrático, enfadonho e morto, um negócio para
a TV, mas o de um jogo tenso e torto que pode operar modulações no corpo
político e no corpo da cultura como uma heterotopia —, a partir de um
pensamento-tatu que, por sua vez, persegue a esferologia da carapaça
amarronzada do bicho vivo em seu pacto com o chão. Logo, de fato, um pacto e
uma composição com a terra, porque ele não sabe cavar. É uma sobrevivência que
se arma na sua metamorfose reversível, ser-bola, e uma reviravolta nesse
traçado da terra arrasada, porque o que está em xeque é um imaginário que ainda
vem, como adverso, do semiárido.
É possível ler e
ver aí, na importância do pensamento dos curadores e na escolha desmedida que
fizeram para os trabalhos que compõem a exposição, o quanto se pode reimprimir
a imagem do que está em extinção (com e como o tatu-bola). É uma arqueologia da
força da arte que, de algum modo, como série imprevista, procura desfazer o que
se costuma chamar de “cultura nacional brasileira” quase sempre armada a partir
da relação íntima entre certa autoridade de espaço (apenas como e onde há uma
maior circulação do dinheiro) e a gangrena da cultura. Relação que, sabemos,
provoca um monopólio da memória (e da história) e uma sustentação ideológica
que reproduz os hábitos de um Estado autoritário que subvenciona a cultura como
forma de manter um patrimônio seguro através de um ou dois rótulos formadores
da nacionalidade exaltada. O futebol, grosso modo, é um caso exemplar. A menos
quando, na contramão, fato raro, alguém articula praticamente sozinho um
esforço inteligente, caso do goleiro Aranha, muito recente.
Assim, a exposição
é composta por uma lista aberta, vária e extensa, com trabalhos de Antonio
Bandeira, Aldemir Martins, Benjamin Abrão, Bispo do Rosário, Hélio Oiticica,
Glauber Rocha, Letícia Parente, Montez Magno, Graciliano Ramos, Nelson Pereira
dos Santos, Lula Wanderley, Paulo Bruscky, Fernando Lindote, Solon Ribeiro,
Rodrigo Braga, os povos Bakairi, Bororo, Guarani-Mbya, Krahô, Urubu entre
tantos outros, para tentar apontar uma outra temporalidade para qualquer imagem
do adverso. A reunião desses trabalhos, numa espécie de série forçada e
imprevista, abre a imagem como uma ficção crítica e nos dá a ver e ler a mancha
do indizível. Quando a imagem não é apenas o que aparece, o visível, mas sim e
sempre ANTES e DEPOIS do visível. Quando ela escancara um buraco no visível
para a dimensão do imaterial, do não-visto. Desse modo, com esse caráter
impreciso, o nenhum já repicado por Mário de Andrade, ficamos diante de uma
possibilidade crítica da arte que pode, de alguma maneira, desmontar a opção
mais constante por uma clareza expositiva para assim desfazer a cena de sempre
que nos leva invariavelmente ao mesmo lugar e a uma reduplicação do mesmo.
Por isso, me
parece, é que Raúl Antelo chama atenção para o quanto não é possível esperar
uma unificação nacional dos acontecimentos históricos porque toda organização
dos elementos heterogêneos numa ficção de origem é “resultado da violência e
não do desdobramento progressivo do sentido histórico”. A proposta seria, diz
ele, tomar o caráter flutuante e sui generis do pensamento da arte e com a arte
para a permissão, uma permissão àquilo que é a sua potência, o seu Dichtung, o
seu DIZER: dizer quase tudo; ou seja, “no espaço da ficção [crítica] cabe, com
efeito, não apenas o discriminado em outros espaços, mas o indizível e o rumor,
o obtuso e o inconfessável, babel e algaravia.”
Diante da imagem
provocada por essa exposição e do gesto de Eduardo Frota e Paulo Herkenhoff com
o tatu-bola, bicho-vivo, temos uma espera e um apontamento: quando a arte é
capaz de escavar uma sobrevivência para desarticular o conhecido?
* Manoel Ricardo de Lima é poeta, professor da Escola de Letras e do
PPGMS, UNIRIO. Publicou, entre outros, "Geografia Aérea", "Jogo
de Varetas" e "A forma-formante: ensaios com Joaquim Cardozo". É
roteirista do longa-ficção "Linz – quando todos os acidentes
acontecem", dirigido por Alexandre Veras
Os piores dias de minha vida foram todos,
Jornal O Globo, 11 de outubro de 2014
Escrita em modo de exílio
Montaigne escreve que sob a influência
da imaginação é possível que o corpo possa se erguer muitas vezes do seu lugar,
engendrando assim, praticamente, um estado de êxtase. Esta imagem aberta é
sempre uma boa deriva de acesso aos livros de Evandro Affonso Ferreira: quando
a imaginação se constitui como uma atividade libertadora para o corpo. É a
presença, num traçado em espiral, do que gira em torno de seu novo livro, “Os
piores dias de minha vida foram todos”, narrado por uma mulher doente que
segura o corpo num exílio forçoso, porém convicto com a imaginação: “Sei que
neste quarto-desamparo procuro levar a imaginação até seu limite — jeito de
driblar entre aspas desintegração contínua delas minhas entranhas” ou “Jeito é
caminhar imaginosa nua pelas ruas desta cidade para fingir que ainda estou
viva. Ilusão, sim, mas benéfica e libertadora”.
Mas esse modo de exílio já está em
todos os livros anteriores, desde “Grogotó!” (2000), quando nos apresenta seu
móbile de desespero a partir das vidas desengraçadas de seus personagens, uma
espécie de estado de tensão recorrente em que lança todos eles. E mais
interessante que, num excesso de imaginação próprio dos infames, quase todos
têm obsessão severa pela coleção despedaçada. Assim, o traço miniaturizado que
entra em cena como ação e gesto nesses personagens, para deslocar seus corpos
inoperantes, é a composição de um catálogo de fracassos, de sobras etc., numa
tentativa de “rastrear as próprias perdas, para escapar às armadilhas da
solidão”. O que também podemos ler nos livros mais recentes, numa operação
entre escavar e recordar: o fortíssimo e denso “Minha mãe se matou sem dizer
adeus” (2010) e o hábil jogo entre o destrambelho e o perecível de “O mendigo
que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam“ (2013).
Em “Os piores dias...”, diante do malogro da vida, entre doença e reclusão, a personagem se ergue quando “pensa ver coisas”, se seguimos Montaigne, isto é, se ergue quando se vê numa deambulação livre da imaginação, mesmo que tenha o corpo imobilizado “horas seguidas sem entrar ninguém para limpar minha boca babujada de saliva; onde fica cada vez mais difícil acomodar-me à condição humana”. Deambulação imaginativa que lembra Manuel Bandeira na construção de sua paisagem fabulosa, promessa para sua adolescência interrompida pela doença, a Pasárgada em que se pode “viver pelo sonho o que a vida madrasta não nos quis dar”.
No livro de
Evandro, a utopia modernista de Bandeira se converte na “metrópole apressurada”
que é a cidade de São Paulo entre suas marcas e monumentos. Ao lado de espaços
assinalados pela mesmice que os apaga, aparece também a cartografia íntima e
desejante da narradora, devassada por “vírus diabólicos, de vitalidade
assombrosa, obstinados em suas maldades, imoladores de vítimas humanas”. É como
se tentasse lançar seu corpo vivo e despido no mundo para correr todos os
riscos de contágio, o que só é possível através da imaginação: “vontade súbita
de sair sem destino [...] vencer distância; simular propósitos; fingir
adventos; ir para desconcertar os planos de volta; não entrar duas vezes na
mesma paisagem; conservar-me afastada deste-daquele quarto fúnebre; viagem
utópica; viajar para correr perigo nas curvas acentuadas; arriscar-me”.
O livro desenha
ainda uma suposta conversa entre essa mulher doente e Antígona, figura da
mitologia grega, que comparece como uma espécie de imagem invertida,
inalcançável, desejada e evocada, a luminosa carpideira dos desafortunados.
Antígona, cuja morte é afirmação de vida e de coragem, opõe-se à mais essa vida
desbotada e desistida, sem feito ou bravura, muito ajustada ao enorme espectro
de personagens desvalidos que, sempre ao som de um jazz, o autor cataloga desde
“Grogotó!” e que, aos poucos, solta no mundo, livro a livro, numa seriação
curiosa de sua única história possível.
* Júlia Studart é
poeta e professora da Escola de Letras daUniRio. Publicou, entre outros, “Vidas
desengraçadas — O gesto de Evandro Affonso Ferreira” (Dobra Editorial, SP]) e
“Nuno Ramos” (Coleção Ciranda da Poesia, EdUerj)
terça-feira, 12 de agosto de 2014
ciranda, Nuno Ramos
Entrevista com Júlia Studart
Editora da Uerj, 29 Julho 2014
Editora da Uerj, 29 Julho 2014
1 - Qual foi o maior desafio de trabalhar com o material literário de Nuno Ramos? (aliás, foi vc que o escolheu
para tema de sua análise?)
O fato é que eu
fazia um pós-doutorado na Unicamp a partir do
trabalho do Nuno Ramos, com bolsa de pesquisa financiada pela FAPESP. E antes
disso o trabalho dele
já era muito presente nas minhas pesquisas, nas
minhas leituras diárias, porque me interessa muito. Tudo isso o
deixou muito perto da mão. Sem
contar que, acho, o trabalho do Nuno merece uma apresentação ou uma publicação de
mais fôlego a mais gente, construção de acessos, sentidos etc. Foi assim que propus
ao Ítalo (Moriconi), coordenador da Ciranda, que topou
prontamente. E aí começou
o meu impasse e desafio: pensar a complexidade e as modulações do trabalho expandido do
Nuno dentro de uma coleção
dedicada à poesia. Há mesmo uma impossibilidade de
fixá-lo, de reduzi-lo a uma
forma, a uma ideia de gênero,
de verso etc. O trabalho do Nuno, prioritariamente, muda de forma, não se fixa, está muito mais perto de uma
forma-informe, de uma forma fraca, e
essa foi sem dúvida uma
dificuldade: dar a ver essas modulações por dentro da forma, a potência dessa metamorfose que
atravessa tanto os seus livros quanto o seu trabalho como artista visual. Indistintamente.
2 - Anteriormente, você já
acompanhava o trabalho de Nuno Ramos?
Já acompanho há algum tempo, desde a publicação do primeiro livro,
"Cujo", em 2003 – o meu livro favorito. Livro que
tenho, porque ganhei dele, aquela primeira edição numerada, linda e rara, num papel e
capas especiais. Talvez depois disso é
que tenha ficado mais atenta ao seu trabalho de artes visuais, até que em 2013 transformei tudo
isso em pesquisa de pós-doutorado.
3 - E a antologia de versos que é apresentada no título. Como foi este processo
de escolha?
Bem,
como toda antologia – e acho o termo um tanto problemático, prefiro
pensar numa reunião espontânea, apenas –, existe aí muito dos meus interesses, das
coisas que mais gosto no trabalho do Nuno entre invenção e algumas insistências,
que gosto de chamar de 'imagens intermitentes', que são recorrentes no
seu trabalho. Também
tentei, minimamente, dar a ver as variações
do seu texto até o ainda inédito "Sermões", experiência
extremamente distinta dos outros livros.
4 - E como se chegou à inclusão de material de Sermões?
Nuno
Ramos possui alguns livros publicados, mas que felizmente não
se deixam fixar tão facilmente [principalmente se pensarmos em categorias como
a de gênero
literário]. Já que a ideia da
coleção é dar uma pequena mostra do
trabalho com a linha, com o verso, com o poema em prosa e com o pensamento, falei
do livro-antologia para o Nuno e perguntei se ele não estava com nada pronto ou se trabalhava em algum
projeto novo relacionado à poesia – o que daria outros sentidos tanto
para a minha leitura crítica, quanto para a seleção de textos. Foi assim que me disse do
seu "Sermões" e que
gentilmente me cedeu para leitura e uso de alguns fragmentos. O bacana foi que “Sermões”
terminou por provocar uma boa conversa e troca entre nós dois acerca de outras questões.
5 - Você acredita que existe algum tipo de diferença em relação a autores que se expressem apenas com a literatura para aqueles como Nuno
Ramos que utilizam várias formas como a artes plásticas, músicas, etc? (aqui nesta
pergunta me refiro ao processo de criação. Por exemplo, se vc acha que o artista plástico Nuno Ramos poderia influenciar o escritor Nuno Ramos)
Faz toda
a diferença. Por mais que o
próprio
Nuno procure separar essas duas instâncias
[escritor e artista visual, sem contar as suas outras tantas atribuições],
seu trabalho é absolutamente
impuro, contaminado. Alguns trabalhos de arte incorporam textos seus ou de
outros poetas, como Manuel Bandeira e Drummond, e seus livros se armam como
grandes instalações movediças, extremamente plásticas, instáveis. Ou seja, Nuno, mesmo sem
que o saiba [se é mesmo que não sabe], arma uma grande transparência
entre os seus trabalhos, todos eles, e cria uma espécie de “ambiente”,
como parece estar definido já em “Cujo”: “A transparência é
uma camada que mal se percebe (a não ser pelos reflexos), mas que cria
uma espécie
de ambiente.” O que dizer de um livro como "Cujo", um misto de
instalação,
poema, livro de notas e procedimentos de trabalho? Sem contar que Nuno Ramos é um excelente leitor de nossa
melhor tradição, carrega uma biblioteca no corpo [o que me interessa
muito para o que penso e para o que faço no meu trabalho] e faz com que seu
trabalho seja de fato muito singular no meio de toda essa nossa produção muitas vezes incipiente e
pobre em invenção.
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